por Thiago Oliveira__
“Em.transe.tu”
Não espero o elevador. Desço as escadas do quarto andar até o térreo.
— Beleza, seu Antônio?
— Tudo beleza!
O Porteiro sempre foi a pessoa mais educada do prédio. Ou talvez o único com quem tenho vontade de falar. Abro a porta e os senhores estão nos bares, ao meio dia, com suas cervejas. Penso se seria sorte, azar ou solidão. Caminho rápido, estou sempre atrasado. Sinal fecha antes que eu possa correr. Os homens com seus panos de prato três por dez batem nas janelas dos carros, junto aos meninos que vendem balas. Ninguém compra nada, só fecham os vidros. Chamo o garoto e peço uma halls. Minha mochila vive cheia delas.
Atravesso com um pouco mais de pressa a caminho do ponto de ônibus. Não passo mais pela estátua do Noel, ela se foi. O cheiro forte de urina arde as narinas. Vejo um casal dormindo ao lado do mijo com seus cobertores sujos. Ao lado, mais outras pessoas na mesma situação, deitadas na porta de bancos. O paradigma da pobreza e da riqueza em um clique. Enquanto espero o transporte, pedintes imploram por comida. Não tenho nada, só um bilhete único. E mesmo se pudesse teria que escolher a dedo quem ajudar. Penso na terra que tudo dá. Se você planta, você colhe. E mesmo assim as pessoas sentem fome?
Coloco o fone de ouvido pra ignorar a realidade. Baby, did you forget to take your meds? Disse Brian Molko na música. E não é que esqueci mesmo! Abro a mochila, caço o comprimido entre os papéis, lixos, halls e canetas. Engulo a seco. Depois que desce é como anestesia. Não sinto mais a mim. Preciso que essas vozes na minha cabeça parem, nem que seja por um minuto. Guardo o celular dentro da calça e o fone por dentro da camisa. Se for roubado, deixo o telefone velho no bolso pra entregar pro assaltante. Talvez ele não perceba.
Finalmente o ônibus chega. Lotado! Penso que ao menos dessa vez não atrasou tanto. Empurro as pessoas pra chegar até um lugar minimamente confortável. Só queria encostar a cabeça na janela e ver a cidade passando hoje, mas não vai rolar. É cata corno que chama? O ônibus parava em todos os pontos e abarrotava cada vez mais gente. Hora de atravessar a grajaú. Quando passo por aqui, penso que não conheço a cidade que vivo. São tantas escadarias, tantas ruas. Quanta gente! Barrancos, casas em más condições. Ser carioca é viver constantemente com síndromes. Ansiedade, pânico e classe.
O moço engravatado ficou na frente do ônibus pra não pagar passagem. Tava noiado que vi. Desceu uns pontos à frente. Cumprimentou as pessoas como se fosse dali. Foi só pra pegar um pó de vinte. Deu pra ver enquanto o povo se amontoava mais pra subir as escadas do coletivo. O tiro tava comendo solto quando o ônibus disparou. Ouvi mesmo com fone nos ouvidos. Ninguém se mexeu. Parecia trilha sonora do trajeto. O incômodo de repente vira parte do cotidiano, mas ninguém percebe. O ônibus para próximo a guarita da polícia, estilhaçada de tiros. É o último ponto que passamos até chegar na área totalmente verde. Me incomoda a velocidade dos carros, a pressa do ser humano, mas lembro que o tiroteio ainda deve estar acontecendo. Se esqueci é porque banalizei a morte, mais uma vez.
O ônibus passa por uma blitz onde só as motos de pessoas negras são paradas. Me sinto estranhamente confortável. Not gonna get us toca no último volume. Conforme chego mais próximo ao meu ponto, percebo que a dose do remédio está mais fraca. Não paro de pensar sobre meu corpo estar murcho e seco. A moça me empurra pra descer apressada do ônibus. Não precisava, também fico por aqui. Desço os degraus em passos rápidos. Hoje não teve desculpas, não teve sorriso, nem um afago. Ainda bem que seu Antônio me deu bom dia.
Thiago Oliveira é carioca, especialista em educação pela Pucrs e trabalha como professor de língua inglesa e língua portuguesa na secretaria municipal do Rio de Janeiro há oito anos. Tem diversos contos publicados em antologias e ´Brutos e insensíveis` é seu primeiro livro.