por Adriano Espíndola Santos__
Mudei-me para o edifício Scala há dois anos e meio, pouco antes da maldita pandemia; portanto, não conhecia ninguém, a não ser o porteiro Antônio e o faz-tudo Luciano. Antônio, que sempre me interfona para anunciar a chegada de algum produto que comprei pela internet, me perguntou, há uns meses, com a voz entrecortada, hesitante, se eu precisava de alguma coisa; se estava tudo bem, porque eu não saía do apartamento. Bem, o impulso foi de perguntar se aquele ato significava preocupação ou fuxico. “Não, seu Carlos, é porque a dona Graça, a síndica, anda preocupada com a sua saúde dos moradores… Ela pede para que ligue semanalmente para cada morador, porque houve um caso de morte no prédio ao lado, no Garanhuns, e passaram não sei quantos dias para descobrir. A mulher morreu de covid… O senhor desculpe o incômodo”. Devo, no mínimo, ter parecido um truculento, troglodita, mas logo entendi a preocupação e agradeci o cuidado – ainda que não o fosse. De fato, quando soube da covid se espalhando, me enfurnei mais e mais no quarto, com medo de tudo. As compras de mantimentos fazia pelo telefone. Luciano dava um jeito de trazer, todo paramentado, como um desses agentes de saúde, e ganhava um trocado – e ainda me fazia rir da bizarrice. No começo de 2021, a notícia da morte de um tio me abalou; não pude – nem iria – velar o seu corpo. Foi a quinta pessoa conhecida que morria de covid. O cerco estava se fechando. Trabalhando de casa, por ordem do Tribunal, não tinha nenhum motivo para me arriscar; sem filhos, pais falecidos, o jeito e a vontade era de ficar fechado no meu mundo. Por mais isolado e introspectivo que eu seja, aquilo estava me deixando alucinado. Pensei em me matar; não queria pagar para ver o resultado do pandemônio. Bolei preparar uma extensão do tubo de gás de cozinha para o banheiro social, onde eu me trancaria e esperaria a morte por asfixia. Estava criando coragem, indo e voltando entre a sala e o quarto, quando Antônio interfonou. Não atendi. Insistiu mais uma vez, e percebi que não poderia ser tão indelicado. “Pois não, Antônio?!”. “Seu Carlos, é que a síndica mandou entregar uma encomenda para os moradores; disse que era importante… Posso deixar aí agora?”. “Antônio, estou ocupado; mas traga logo!”. Não deu cinco minutos, Antônio estava batendo na minha porta – é, por conveniência, desliguei a campainha. Antônio trancou os dentes, nervoso, e entregou o pacote sem dizer uma palavra. Entupi o embrulho de álcool. Abri, imaginando que a síndica queria fazer uma média, se tornar próxima; ou que estava, com isso, cavando um novo mandato. Qual o meu espanto ao ver que o conteúdo era uma bíblia, bonita até, com zíper. Na verdade, a impressão que me causou foi o impacto de confrontar a morte tendo, há pouco, recebido o anúncio da “boa-nova”. Folheei o objeto místico, sem emoção, pensando que poderia ler algo que me demovesse da ideia; aí seria muita coincidência, quando abro no seguinte trecho: “E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo”. Mudei de opinião naquela noite. E, assim, tenho inventado desculpas para sobreviver.