por Yvonne Miller__
23 de novembro de 2022. O ônibus Rio-Paraty que sai nesta manhã de quarta-feira está com todos os assentos ocupados. Deve ser por conta da FLIP, que está prestes a começar, e que vou visitar pela primeira vez. Enquanto o motorista manobra milagrosamente entre carros, caminhões, motos e jumentos, vou organizando meus pertences no pequeno espaço entre meu assento e o da frente: casaco e cachecol pendurados do ganchinho, a mochila aos meus pés, livro na mão. Abro o livro e leio um parágrafo, quando uma voz penetrante, vindo da fila de trás, me distrai.
– Filha, o que você fez com meu celular, que a internet não tá pegando, hein?
– O que eu ia fazer com seu celular, mãe?
– Se você não fez nada, por que não tá funcionando?
– Como eu vou saber? Tenho cara de vidente? Por que não faz outra coisa? Ouça música ou sei lá...
– Não tô achando meu fone. Vai, vê se tu consegue.
– Tá, me dá aqui. Deixa ver... Hum... Não sei... Talvez você esteja sem créditos.
– Sem créditos?! Mas se eu botei vinte reais semana passada!
A filha não diz nada; imagino que está dando de ombros. Segundos depois começo a ouvir o som abafado de guitarras e bateria. Pelo menos ela usa fone, penso e volto a olhar para meu livro. Mas antes de terminar uma frase...
– Tudo ladrão, essas operadoras! A pessoa vive colocando créditos e na primeira necessidade... um absurdo isso!
O som da música aumenta.
– Filha.
Nenhuma resposta.
– Filha!
Nada.
– Não acredito. Eu boto a pessoa no mundo, dou comida, dou carinho, dou educação, dou celular, coloco créditos, e agora... FILHA!!!
Algumas pessoas nas filas da frente viram as cabeças.
– O que que é, mãe? – retruca a outra num sussurro ríspido.
– Me dá seu celular.
– Oi?
– Me dá aqui. É meu; eu que comprei.
– Claro que não... Mãe! O que é isso?! Para!
– Pronto. Agora já pode mudar esse barulho e pôr uma música decente.
– Mãeee...
– E para de choramingar. Você sabe que não aguento isso. Me dá aqui, cadê a playlist? Aff Maria, você não tem uma música que preste?!
A menina emite um suspiro sofrido. Quando responde, sua voz soa resignada:
– Tipo...?
– Tipo Belchior, ou algo assim. Ah, aqui ó, achei: Como nossos pais. Adoro essa.
Ouço um resmungo de reprovação, seguido por – finalmente – silêncio. Parece que a mãe assumiu não só o controle sobre a música, mas também sobre o volume. Consigo ler uma página inteira, antes de...
– Olha só! Essa aqui é a Laura?
– É. E já pode parar de mexer nas minhas fotos, viu?
– E esse menino que ela tá beijando, quem é?
– O Lucas, da minha escola. Eu que juntei os dois.
– Filha? – diz a mãe com a voz seriamente preocupada: – Você está levando sua amiga para um mau caminho?
– Claro que não! Mãe, para de falar essas coisas!
– Desculpa, mas você e eu sabemos que seu gosto de homens... hum!
Antes que a menina possa responder qualquer coisa, ouve-se um ruído acima das nossas cabeças, seguido pela voz do motorista, ao mesmo tempo que o ônibus diminui a velocidade e entra no estacionamento de um restaurante-loja-mercado à beira da estrada.
– Senhores passageiros, vamos ter uma parada de 30 minutos. Obrigado.
Assim que a voz do alto-falante cessa, ouve-se a da senhora de trás:
– Ihhhh, começou o esquema capitalista... Era só o que me faltava! Uma parada para quê, se acabamos de sair do Rio?!
Mal o motorista havia terminado de falar, algumas pessoas já se levantaram, causando uma reação em cadeia entre o resto dos passageiros.
– Olha só, como o gado... Tudo capitalista!
– Mãe, por favor... – choraminga a menina.
Tenho certeza de que ela está se encolhendo no assento, cobrindo o rosto com as duas mãos e desejando ser engolida por um buraco negro.
O ônibus para. Fico sentada e observo as duas saírem pela porta: Assim que a menina encosta um pé no asfalto, corre para longe da mãe. Certamente para desfrutar do esquema capitalista em paz.
Eu, por minha parte, pego meu fone da mochila e o coloco no chão atrás do meu assento. 30 minutos e dois capítulos depois, mãe e filha são as primeiras a entrarem novamente no ônibus. A filha fica parada no corredor ao meu lado, enquanto a mãe se acomoda no assento.
– Olha só, meu fone! – diz ela de repente, surpresa. – Deve ter caído da bolsa, você acredita nisso?
Sinto o olhar desconfiado da menina em cima de mim, mas enfio a cara no livro e finjo estar absorta pela história. Pouco depois ouço o som abafado de duas músicas diferentes emergindo atrás de mim. Passo a página. Três horas e meia depois, ao chegarmos em Paraty, fecho o livro contente. A FLIP pode começar!