Que você seduz, um conto de Luiz Henrique Gurgel

 

por Luiz Henrique Gurgel__




Precisava descansar e achar um lugar para dormir depois de tanta estrada. Viu luzes ao longe, vilarejo com senador no nome. Seguiu devagar, buscando uma rua maior ou a torre de uma igreja que apontasse o centro da cidade, aí achar um hotel barato, uma pensão. Mas podia, antes, tomar uma cachaça local, artesanal, se é que isso ainda existe. O calor, a canseira, a oportunidade se oferecia. Cerveja também, pensou, justo ele que não bebia muito, problemas de estômago, gastrite e outras ziquiziras de quem passou dos quarenta, era preciso tirar a poeira da goela, lembrou-se da desculpa de um caminhoneiro.

 

Não achou sinal de igreja, pensão ou centro de cidade. Só uma série sem fim de casebres baixos, caiados ou descoradamente coloridos ao longo da avenida prolongamento da estrada. Adiante viu luzinhas coloridas piscando, como de árvore de Natal, e uma placa de propaganda de refrigerante, única coisa que encontrou aberta. Dia seguinte teria uns 100 km até a Capital, deixar o carro na locadora, correr para o avião e dormir cheio das misérias contempladas em uma semana de andança sertaneja. Nem teria tempo de se arrepender por não ir à praia, em quatro dias tinha que entregar a matéria.

 

Começou degustando devagar a cachaça, com medo de uma provável dor de cabeça a despertá-lo pela manhã. É da região, garantiu o sujeito atrás do balcão. Suave para ele, ruim de copo. Bodega meio bar, meio armazém, prevalecia a parte boteco, chão de tijolo, cartazes de bebidas e marcas de cigarro desconhecidas. Em destaque a Rainha da Catuaba, loura grande enfiada num shortinho minúsculo, com bustiê para arrebentar na tentativa de conter os enormes peitos, sorriso entre um convite e o desespero.

 

O som ambiente vinha do aparelho mais moderno do bar, uma máquina de música, tipo jukebox e karaokê ao mesmo tempo. Três ou quatro gatos pingados se revezavam na troca de cedês, afogando as mágoas em duetos com Reginaldo Rossi, Roberto Carlos e Odair José.

 

Ficou ouvindo, virou o último gole da cachaça e esvaziou a garrafa de cerveja no copo. Calor e sede, bebeu que nem água, não gostava muito de cerveja, mas aquela...

 

Outra cachaça, outra cerveja. Tira-gosto, moço? Entre as iguarias disponíveis preferiu encarar o queijo aperitivo, farinhento, sabia que tudo aquilo ia virar uma bomba dentro dele, mas estava cansado, tinha fome. Continuou com seus botões entre meditações curtas, memórias casuais e o suor escorrendo da testa.

 

A música parou. O copinho de cachaça estava vazio de novo, a cerveja quase. Saiu do balcão e foi até a máquina colorida e piscante, lembrou dos fliperamas da adolescência, olhou até entender o negócio. Apertava uns botões e por baixo do vidro páginas cheias de capas de cedês, quase como de um jornal, virando para se ver o que tinha. Achou uma Gal Costa e ficou feliz.

 

Dá outra dessa, apontando para o copinho de cachaça, e mais uma cerveja. Era a terceira rodada, agora não escaparia mais da condenação na manhã seguinte. Bateu no bolso atrás de moeda, não achou, deu uma nota de dez para o bodegueiro trocar. Selecionou a Gal, cabeça entornada para traz, cabeleira caída, batom vermelho e aquele sorrisão só dela, apertada num vestido preto brilhante, parecia látex, e ainda apontava o microfone para o meio das pernas. Bem bom, o nome do disco.

 

Foi direto para faixa dois, Chico Buarque, Essa menina que você seduz....  Deu longo gole na cerveja, bateu junto, de virada, a cachaça e desta vez fez careta. Um dia depois, sem mais nem mais esquece... Seguia a canção mentalmente, ou balbuciava, de frente pra máquina, olhar fixo. A música acabou, pôs outra moeda. Essa menina.... Começou a cantar junto, voz alta, embargada, às vezes se atrapalhava num verso, boca amolecida de cachaça, de ternura, de saudade do que não teve.

 

De novo. Apertou o botão errado e várias páginas passaram, perdendo a Gal. Apertou nervoso o botão para frente e para trás, irritado, capas de cedês indo e voltando. Encontrou-a de novo, sorrindo. Não, agora ela ria, desbragada. Outra moeda, depois mais outra e outra e outra e outra, trocou uma nota de vinte.

 

A sobrinha do dono da editora tinha vinte e três anos, último ano de jornalismo. Alta, cabelos ondulados, olhos vivos, atrevidos, bundinha e nariz empinados. Mas não punha banca por ser parente do patrão ou por ser bonita. Era inteligente, língua afiada, raciocínio rápido, apesar da ingenuidade típica da idade. Sorriso enganador. Quando deu conta da semelhança com aquelas serpentes que paralisam o ratinho antes de engoli-lo, já era tarde, se quedara. A juventude encanta.

 

Zé, tenho um trabalho de Filosofia que está me deixando louca. Não sei por onde começar. Já ouviu falar de um cara chamado Walter Benjamim?

 

Ele rodou mentalmente nos calcanhares. Nem percebeu que empinou levemente o peito, num sorrisinho orgulhoso, ar de professor de cursinho e foi falar dos seus tempos de Filosofia, dos professores que tivera, das aulas de alemão para se iniciar no original justamente de Benjamim. Não, ele não conseguira se formar e não restara patavina do alemão, tinha que trabalhar muito, estudar a noite, sem falar nos botecos, nas crises de existencialismo barato, na preguiça.

 

Quase se derreteu com o sorriso dela enquanto falava do frankfurtiano. Para alguma coisa na vida tinha servido ruminar tanta melancolia e ter lido sobre alguns temas em Baudelaire e ter imaginado o amor por uma mulher que passa em meio à multidão para nunca mais. 

 

Sempre trouxe meus namorados a esse bar. Ele ficou contente em ouvir, gostou da palavra “namorado”. Uma banda tocava jazz das antigas, É dixieland, disse para ela com ar de sabido. Reconheceu um Scott Joplin que o pianista fez sem a banda, falou de novo quem era, precisava continuar a impressioná-la. Parente da Janis?

 

Noite quente, beberam cerveja à vontade e, como o som estava alto, ela vinha sempre falar ao seu ouvido. Foi numa dessas que esbarraram, sem querer, boca de um na boca do outro. Tão maravilhosamente de leve que não teve jeito a não ser beijarem pra valer, muito, escandalosamente. Ele quase cai da banqueta e o garçon tocou no ombro a pedir moderação, o ambiente exige respeito.

 

Estava iniciado. Ela tinha um pseudonamorado e outras histórias mal resolvidas. Ria de tudo, mas ficava estranha ao falar do pseudo, um moleque, pouco mais velho que ela, desses geninhos que fazem mestrado e doutorado em cinco anos, antes dos 30. Ele, em compensação, estava sozinho há meses, um casamento para trás e um filho de doze anos.

 

Saíram do bar, na esquina deram-se as mãos. Pararam no outro quarteirão, encostados no velho Monza quatro portas, herança deixada pelo pai dela. Estavam debaixo de uma árvore, sombra noturna apropriada, voltaram a se atracar. Muitos beijos e o fogo. Ela ainda pediu, na orelha dele, encostada na porta do Monza: Nas coxas, Zé! Nas coxas! Ele se intimidou com a gente que passava pela rua. Depois ela tinha aula cedo e ele também não podia chegar tarde na redação.

 

Fogo puro, ou quase. Chamas arderam por dois ou três meses. O ingênuo só soube quase na véspera que ela ia embora pra Londres, Berlim, Helsinque ou sabe-se lá pra onde. Pior, ia com o pseudo. Na vida real, você é que enlouquece. Foi mais ou menos nesta época o último porre de cachaça, de triste memória.

 

Acordou encolhido no banco apertado, boca amarga, pegajosa, sol batendo na cara encostada no vidro, cabeça explodindo, estômago em pandarecos, corpo melado. Espírito embaçado pela lembrança inútil, a nebulosa imagem dela, a voz da Gal na Rádio Cabeça, o calor que sufocava. Sentiu uma garrafa na barriga, de plástico. Água mineral. No peito a carteira com um bilhetinho enfiado, letra garranchada em português correto: “Peguei dinheiro certinho da conta, trinta e dois reais, incluindo a água. Acho que o disco de Gal Costa não toca mais”.

 

Olhou o relógio, tinha duas horas pra chegar ao aeroporto. Com dificuldade, sentou no banco da frente. Virou a garrafa com tudo, sugava, quase perde o fôlego, jogou no rosto, na nuca. Na rua, bicicletas, gente pra lá e pra cá, rabo-de-olho nele, risinho de canto de boca. Ligou o carro, tateou até achar a caixa de óculos escuros no fundo da bolsa, no chão, atrás do banco. Também achou o comprimido, analgésico. Dava um jeito de mijar na estrada, achar lugar para um café preto, pão com manteiga e um suco de seriguela.








Luiz Henrique Gurgel é paulista de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Também participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.