por Alexandre Arbex__
“Mulher sem coração” (pág. 46)
Oleana Richter tinha oito anos quando, tratando uma asma, descobriu que não tinha coração. Os médicos submeteram-na a exames escabrosos, redigiram os mais desoladores diagnósticos e a condenaram a uma vida abrupta, alegando que apenas a inconsciência da impossibilidade de estar viva explicava sua existência até então. A menina cresceu à sombra da morte precoce, acossada pela infatigável curiosidade dos jornalistas, primeiro exaltada como um prodígio, depois denunciada como uma fraude, por fim execrada como uma aberração. Incapazes de explicá-la, os cientistas perderam interesse no caso e deram por confirmadas suas previsões quando Oleana, malgrado sã, foi sepultada pelo esquecimento público. O ostracismo permitiu-lhe seguir vivendo normalmente. Seu corpo adaptara-se maravilhosamente às circunstâncias: o pulmão esquerdo, dilatado para preencher a concavidade cardíaca, ajudou-a a empertigar a postura quando os seios cresceram, e órgãos subestimados, como baço e vesícula, assumiram as funções de propulsão do sangue e regulação do ritmo vital, e desempenharam tão bem essas atividades que Oleana não precisou renunciar a nenhum esporte na juventude. Estava em plena forma, mas sem coração, quando conheceu o amor. Ocultava sua condição dos parceiros e, se reconhecida, inventava ter recebido na Letônia uma prótese metálica, com bateria embutida, crivada de canudos de silicone. Numa fase de rebeldia, inscreveu-se num curso de cardiologia apenas para desacreditar os dogmas da ciência e desafiar a autoridade dos catedráticos, mas suas intervenções em aula soavam demasiado passionais e inverossímeis. Para testar os limites do corpo e gozar o secreto prazer do risco, tornou-se recordista em doação de sangue no continente. Por gestos assim e por sua generosidade instintiva, quase perdulária, pessoas que ignoravam seu estado diziam que ela tinha um grande, que ela era toda coração. Sob pseudônimos variados, professou a poesia com relativa aceitação da crítica, adotando o estilo antilírico, cartorial então em voga nos meios letrados. A pensão deixada pelo pai, o major, garantiu-lhe o conforto na maturidade. Foi fumante e, eventualmente, ciclista. A certeza de que poderia morrer a qualquer instante dotara-a de um temperamento impetuoso, que a tornou para sempre avessa à vida conjugal. Um de seus amantes consumiu-se em remédios, outro foragiu-se da guarda nacional, o terceiro preferiu ficar só. Nenhum desses destinos engendrou nela o ovo da culpa. Seguia, como gostava de dizer, os ventos do coração. Muito idosa, serenamente, escolheu o fogo para apagar os vestígios de seu corpo.
“Acefalia: prós e contras” (pág. 89)
Sempre me inquietou a capacidade dos homens sem cabeça de encontrar tempo para estar juntos. Dadas as dificuldades inerentes à sua condição, presumo que não seja nada simples para eles marcar essas reuniões com a prudência e a precisão que um grupo com tais características não pode deixar de observar. Incompreendidos pela família e desacreditados pela medicina, os homens sem cabeça sentam-se em círculo, dão-se as mãos e trocam impressões sobre os problemas que os afligem no cotidiano: o desrespeito no trânsito, a insensível curiosidade das crianças, a má qualidade das próteses de louça e balão. A sós, entre eles, sentem-se seguros e amados. Queixam-se de enxaqueca, torcicolo e outras dores fantasmas. Fazem ginástica, injetam-se com substâncias soporíferas e dormem abraçados. Têm filhos saudáveis. Consta que alguns já viveram mais de cem anos.
Alexandre Arbex nasceu em 1980, em Resende, no Rio de Janeiro, mas cresceu na capital, onde morou até 2009. Desde então, vive em Brasília. Publicou o livro infantil "O livro" (Casa da Palavra, 2001) e o livro de contos "Da utilidade das coisas" (7letras, 2016), esse finalista no gênero no Prêmio Jabuti. Além disso, foi finalista do Prêmio Off Flip duas vezes e levou o terceiro lugar no Prêmio Rubem Braga de Crônicas, do Sesc, em 2015. Possui contos publicados na Revista Gueto e no projeto Máquina de Contos.