por Taciana Oliveira___
Nesta edição entrevistamos Sandra Godinho, autora do surpreendente suspense psicológico e romance histórico Estranha entre nós (Editora Libertinagem , 2022). A obra levanta temas extremamente pontuais e expõe as condições impostas as mulheres que sobrevivem aos efeitos de uma sociedade patriarcal e misógina. Sandra Godinho constrói uma narrativa vigorosa, mas sobretudo escancara a crueldade de um sistema desumano que exclue os indejados à revelia na insalubridade dos corredores de um manicômio. Ela nos revela: "Ao me deparar com o livro Holocausto Brasileiro, da Daniela Arbex, e alguns documentários sobre o Hospital Colônia em Barbacena, a urgência de escrever um romance se impôs e me chamou à escrita."
1 - Como você definiria o teu romance "Estranha entre nós"?
Eu tenho alguma dificuldade em definir um gênero que o enquadre. Acredito que Estranha entre nós tem um viés psicológico, mas também resgata um tempo histórico, o da ditadura militar, em que os hospitais psiquiátricos serviam de depósitos para os desafetos políticos e as mulheres cujos maridos e famílias queriam se livrar, simplesmente por serem deficientes, epiléticas, estupradas e grávidas de seus patrões, ou simplesmente, que viraram um estorvo. Arrisco-me a categorizar o romance como sendo um suspense psicológico e também histórico.
2 - O que você destacaria do processo de desenvolvimento da obra? Quando nasce uma "Estranha entre nós?
Tenho interesse sobre os meandros da mente, o comportamento e os conflitos humanos etc. Tenho alguns romances ainda não publicados sobre esse tema. Ao me deparar com o livro Holocausto Brasileiro, da Daniela Arbex, e alguns documentários sobre o Hospital Colônia em Barbacena, a urgência de escrever um romance se impôs e me chamou à escrita. Isso foi há quatro anos, mas eu deixo o livro marinando depois de uma primeira versão para reescrevê-lo mais tantas vezes, buscando a ajuda de outra pessoa para que, com sua leitura, me ajude com seu olhar, pois um livro não se faz sozinho. Eu sou muito insegura quanto a dar um texto por encerrado, acho que ele nunca está bom o bastante. Mas tem uma hora que é preciso dá-lo como acabado, deixá-lo alçar voo.
3 - Quanto tempo de formatação até chegar na versão final? Você utiliza algum método? Uma rotina de trabalho?
Ao atingir a versão final, o texto é entregue à editora para a diagramação. Nesse ponto do processo, levo mais um mês, realizando duas revisões extras do miolo, mesmo assim, às vezes, ainda escapa algo. Não tenho um método específico. É preciso tempo e paciência, mas eu sou ansiosa e distraída, então, eu peno um bocado. Minha rotina, enquanto estou esboçando a primeira versão de um romance, é tentar escrever todos os dias pela manhã. Um romance é um quebra-cabeças e, uma ponta solta que seja, pode o desacreditar ou desqualificar, então eu quero ter a sequência narrativa fresca na minha mente para melhor lidar com os pontos principais e evitar os furos.
4 - Como se deu a concepção do perfil psicológico dos personagens?
Eu queria criar uma personagem fragmentada. Ela quer ser amada, mas não é, então ela acaba em clivagem. Uma outra personalidade se esconde dentro dela, a que quer se libertar, então a obriga a reagir. Ela não gosta da mulher submissa que Cassandra é, então quer libertá-la e, por não conseguir, a odeia, xingando, fantasiando, etc. É um embate de Cassandra com ela mesma, no final das coisas. Há mulheres que se libertaram do jugo patriarcal naquela época, pagando um alto preço por isso, outras não, acabaram se submetendo e virando a “mulher recatada e do lar”.
5 - "Estranha entre nós" aborda temas como gaslighting e a sobrevivência de personagens a uma rotina de crueldade durante o período do regime militar. Você parte de uma construção ficcional ou traz elementos biográficos para estruturação da narrativa?
Cassandra é totalmente ficcional. Algumas personagens, apesar de também serem ficcionais, foram baseadas em histórias reais, de gente que passou pelo Hospital Colônia e tiveram seus filhos arrancados dos braços. Epilépticas, meninas que trabalhavam em ‘casa de família’ e foram estupradas por seus patrões etc. Às vezes, a realidade é ainda mais surpreendente que a própria ficção. O que eu gostei de escrever foi sobre a sororidade encontrada num lugar tão desprovido de dignidade e afeto. Quem dera o mundo pudesse ser mudado assim, não é mesmo? Enquanto isso, faço da palavra escrita um grito. Um grito para os que não tem voz.
Taciana Oliveira é cineasta, editora, comunicóloga,e um tanto de outras coisas que ela ainda encontra tempo para se dedicar.