por Davison Souza _
Meu pai tem cabelos pretos e ondulados, uma
estatura mediana, jogava futebol nos campos de terra batida da cidade de Fortaleza,
era um grande lateral. Alucinado pelo Fortaleza Esporte Clube, tem mais de dez
camisas do time, essa galeria é um de seus orgulhos. Nos finais de semana, na
nossa casa, na comunidade de Parque Veras, ele colocava no toca fitas, Bartô
Galeno, Reginaldo Rossi, Lairton e seus Teclados, Odair José, dentre muitos
nomes do brega nacional. Na nossa sala, reunia os amigos, ria alto e comia
sarapatel. Ali, naquele espaço-tempo, eu aprendia sobre a importância da
comunidade.
Lembro que ele acordava às 5 horas da manhã,
tomava banho, passava perfume e ia para a rua, sentava-se na calçada e acendia
um cigarro, esse era seu ritual. Nos finais de semana, enquanto minha mãe e meu
irmão dormiam, eu acordava às 6 horas, tomava um banho, sentia a água gelada
escorrer pelos meus olhos, e em silêncio ia para a rua, lá eu o encontrava, e
compartilhávamos juntos esse ritual, sentindo o sol quente-revigorante da manhã,
em nossos corpos-pronúncia a gente se comunicava, em silêncio.
Durante a semana, meu pai trabalha – na
realidade, ele exerce essa rotina desde seus 8 anos de idade –, suas mãos são calejadas
pela dureza da vida, aprendeu cedo a tecer o couro, e com o couro fazia bolsas,
carteiras, cintos, fazia arte, mesmo sem saber... quando criança, guardo na
memória, que às 11 horas da manhã ele chegava para almoçar, o cheiro de feijão
mulatinho cozido tomava conta da casa, ele abria a porta e sorria, seus dentes
AmarElos eram como um abraço-reconfortante, me sentia seguro naquele espaço. Meu
pai não tinha a cultura do abraço, foi endurecido pela crueldade do racismo,
seu jeito de demostrar afeto era em nos dar condições materiais, dessa forma
ele dizia que nos amava incondicionalmente.
Ele não sabia ler o mundo das palavras, não
sabia escrever, estudou até a terceira série do Ensino Fundamental. Teve esse
direito negado. Tinha que trabalhar para ajudar em casa. Aprendeu a ler nas
labutas da vida, lia o mundo como ninguém, cada entrelinha, contextos e
situações. Escreveu sua estória em diversos espaços, um deles foi no terreno da
minha memória, aprendi a amar seus amores. Ele me ensinou o ofício de mexer com
o couro, mas enfatizava que aquilo não era para mim, abriu caminhos, foi mais,
para que eu pudesse ser quem eu quisesse ser. Dentre seus ensinamentos, me
mostrou a importância de tecer relações de aquilombagem, viver em comunidade e
voltar para meu terreiro, sorrir e dizer “estou em casa”.
Meu pai é um homem negro e como outros homens
negros, lhe foi negado o direito de ser humano, ele não podia chorar, estar
triste, frustrado, errar e não podia sequer ficar cabisbaixo. Ele teve que ser
forte, desde seus 8 anos, teve que ser cem vezes mais, para ter o mínimo. Eu
sempre o via como alguém inabalável, seu corpo fechado era impenetrável, com certeza
ele viveria para sempre, era isso que eu pensava...
Quando meu pai ficou doente em 2019 eu chorei,
senti, naquele momento, que ele poderia partir. Eu, um homem negro de 21 anos
de idade, também endurecido pelo racismo, chorei. Depois de dez anos sem soltar
uma lágrima, chorei sem parar, me libertei, por quase uma hora, eu pude ser
humano. E então enxerguei sua humanidade. Meses depois, deitado na cama de um
hospital, em longas noites em claro, a gente sorria, chorava, tínhamos medo e
angústias. E em meio a um abraço, pudemos dizer: eu te amo; e mudamos o jeito
de demostrar afeto. Naquelas noites em que me vi sozinho com ele, me dei conta que
o racismo é tão perverso, que nem eu, seu filho, lhe enxergava como humano, afinal,
ele era um homem negro.
Hoje, após 3 anos do seu retorno ao Orum,
escrevo essa narrativa escutando Bartô Galeno, porque “Essa canção me faz
lembrar você”. Pai, são 11 horas da manhã e sinto o mesmo cheiro do feijão
cozido, sou invadido pela saudade com o mesmo sentimento de quando era criança,
eu olho para a porta esperando que você abra, entre e me dê um sorriso, mas não
te vejo, e cada minuto a mais no relógio, tenho a certeza que você não virá, e
assim como Odair José, eu, perdido na imensidão da saudade, me pergunto : “Cadê
você, que nunca mais apareceu aqui e não voltou para me fazer sorrir?”
Era isso que eu pensava até perceber que você
está em mim. Foi então que eu aprendi sobre ancestralidade, por meio da
saudade, e pude então entender que você não foi, você é. E assim como a imagem
de São Francisco, que o senhor guardava na carteira para lhe proteger e lhe
guiar, eu também guardo sua imagem, pai, que o senhor continue abrindo meus
caminhos. Sua benção.