por Adriane Garcia___
Não esquecer. É com esse título imperativo que Clara Baccarin começa uma condução rumo à memória, não só a memória antiga, mas a memória recente daqueles fatos que insistem em se disfarçar de novos. Não esquecer é também um recado que costumamos deixar para nós mesmos, cientes da nossa facilidade em recair. É um mantra de proteção: não esquecer, lembrar, a despeito de toda a tentação de repetir.
Dividido em cinco seções, Não esquecer se compõe de poemas em versos livres, em sua maioria sem títulos, orientando-nos para uma leitura em que tanto o poema é suficiente em si, quanto é integrado aos outros poemas da mesma seção. O eu-lírico que aqui se apresenta é voz de mulher rompendo grilhões existenciais. “Com as próprias mãos” será preciso remodelar o corpo e a mente. Uma poética que conta uma odisseia e um destino – a odisseia, toda uma vida, que é a luta de uma mulher tomando posse de si mesma, de seu território e de sua casa; o destino que é o oracular “torna-te quem tu és” e que a poeta nos sugere só poder ser tomado pelas próprias mãos.
É bonito acompanhar o percurso que é de libertação. Uma revolução que vai se dando de dentro para fora da mulher que percebe que algo precisa ser rompido. Nos versos de Clara Baccarin é como se o eu-lírico repetisse “não esquecer, não esquecer” para avançar na sua revolução silenciosa, mudança que precisará se dar no campo relacional. Aqui, entra o grande nó, o amor; decifrá-lo, saber ao menos o que não seja. Após um tempo de equívocos, fazer o caminho do amor com alguma prudência, algum vagar, romper a rotina da ansiedade, praticar a aceitação de um novo modo de estar no mundo. Talvez, transformar a solidão em solitude, após colocar o homem para fora de casa e descobrir que isso é bom. Não ter mais “essa disposição de ser terra com cercas”.
Separação, divórcio, opressão, os destroços das relações: tudo isso está contido em “Com as próprias mãos” em poemas que mostram não só a dor silenciada, mas uma nova preocupação, a de proteger a liberdade incipiente, conquistada a duras penas. Nas palavras da poeta, proteger a chave “no meu bolso da frente” e deixar que as feridas se curem de forma natural, sem sair por aí cumprindo um script de “divorciada”, papéis de como ser ou não ser que alimentam as expectativas alheias. Há uma conquista exalando desses poemas, um ouvir-se, um descobrir que o desejo está vivo, mas já é de outra ordem. Não mais o desejo do outro, mas um desejo de “ser a própria voz”. A poeta expressa resiliência quando inclui significantes de vida e beleza como flor, pétala, semente em meio aos significantes de águas turvas, pedra bruta, rugas, rouquidão. Clara Baccarin escolhe as palavras que contrapõem passado e presente, dureza vivida e leveza pretendida.
Neste Não esquecer é possível encontrar um eu-lírico-personagem tecendo um fio condutor de uma narrativa que se dá em poemas; uma personagem que compreendeu a grande falácia do poder de controle. Em “Da serra ao fim do mundo” ela concluirá: “não rezei/ e chove”. O processo de desapego do controle é um dos mais difíceis de se executar, a falsa sensação de segurança que nem livrou o eu-lírico das desventuras – plantar e não colher o esperado, “plantar rosas e ver nascer/ trapoerabas serralha dentes de leão” – quer ser substituída pela capacidade de deixar-se fluir com a vida e até mesmo com o acaso. É fácil recair na tentativa de controle, e a poeta nos revela que existe o medo de, fluindo, ser enganada pelos próprios sentidos, medo que ainda é recaída, mas já há novas decisões, como nestes versos tocados por um humor sutil: “eu não passaria/ de novo/ o fim do mundo/ com você”. Muito de Não esquecer refere-se a uma trajetória de aprendizagem: escolher é ganhar uma coisa e perder outra, não será possível colher todos os bons frutos que caem, a vida acontece independente de nossa vontade e se devemos dar conta de nossa liberdade “com as próprias mãos”, também devemos aceitar que elas não vão conduzir o mundo: “é tempo de olhar para as coisas sem interagir com elas”.
Há uma constatação de que obcecar-se pelo objetivo é perder o caminho. A poeta comunica uma inversão que é “não perseguir as flores/ e ser toda a travessia”. Algumas imagens muito simbólicas dão conta dos elementos que tensionaram a angústia até o ponto das novas resoluções: a aranha, a vida na teia, a fatalidade, a finitude constatada na morte do inseto. Uma fé é destruída e outra erigida, agora mais humilde, porém mais eficaz, nos diz o eu-lírico: “é muito universo paralelo/ mas eu ainda estou neste”.
Em Não esquecer, seção que dá título ao livro, mais um imperativo necessário: “comece pelos canteiros”. A poeta nos lembra da importância de plantar; colher é depois; mas colher também pode ser nunca. Conselhos de sabedoria não são conselhos de autoajuda, Clara Baccarin nos diz da necessidade de desinvestir as ilusões, não que devamos desistir dos campos floridos ou do amor, mas é preciso reeditar os mapas e ter coragem de revisitar o amor mais genuíno, o amor infantil, aquele prenhe de ternura, desaprendido depois de tantas decepções. Esperar é também verbo e sentido constantes em Não esquecer. As mudanças são demoradas, afinal são muitas as visitas ao passado para compreender o presente e recusar a paixão no sentido de “pathos”. A nova busca é por um equilíbrio no encontro com o outro e isso só é possível após entender qual o lugar deste outro em nossa vida. Não voar, mesmo com asas prontas.
Tamanha elaboração só é possível através da palavra. Aqui, tal elaboração acontece por meio da poesia, a linguagem capaz de dizer o indizível. Em “Casa de poesia” a metalinguagem nos mostra o poema como artefato do cotidiano e – vizinha de “Agouros e vestígios” – tal casa poética nos fala da dificuldade que é ser criança, da solidão infantil, mostrando que “as crianças de corações quebrados” crescem e se transformam em adultos de corações quebrados. Não esquecer é um livro de depois da luta, um livro que desponta com o raio de sol que entra pelas frestas de onde só havia breu. É livro de um pós-guerra pessoal. O eu-lírico destruiu para construir, deixou de repetir para criar, reaprendeu os anos inaugurais, reaprendeu as pequenas coisas como grandes, recuperou a lição infantil para a sobrevivência: o encantamento. E ainda nos deixou um recado: não esquecer.
***
construiu-se outro seio
onde havia um seio
concebeu-se outro corpo
***
onde havia um corpo
outro coração forte
outros braços, depois de tantos tropeços,
sentindo coerências em levantar pesos
outras costas, mais largas, mais livres,
mais abertas
para escancarar e encarar os mundos
outros ombros, outro pescoço,
nova cabeça
onde havia uma cabeça
outros pensamentos.
onde havia tantos pensamentos
confeccionaram-se nuvens
e um olhar que as acompanha,
sem sobressaltos.
o céu se redesenha a cada segundo
e os olhos observam.
inventaram-se outros olhos
escancarados ainda e muito mais imediatos
dialogando mais de pronto
com esse coração desatado
e traçando passos mais tranquilos
apesar de todos os pesares.
são novos esses seios, bem-vindos.
bem-vinda.
voltar,
nunca mais.
***
Não esquecer
Clara Baccarin
Poesia
Ed. Patuá
2022
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).