Nos teus quadris de parideira, de Mariana Cardoso Carvalho

 por Luiz Henrique Gurgel__




Para quem sabe rimar amor, humor e dor


Fui lendo Nos teus quadris de parideira, de Mariana Cardoso Carvalho, como quem vai degustando um pacote de biscoitos finos e únicos. Lia devagar, saboreando poema a poema para que não acabassem logo. Iam despertando uma invencível vontade de serem relidos, como dizia Gaston Bachelard sobre os bons poemas. Descobri o livro por causa dos versos e das pequenas crônicas poéticas, fluentes e cheios de humor, que a autora publicava nas redes sociais e em revistas eletrônicas.

Não achei outras resenhas sobre os versos paridos por Mariana, a não ser o belo posfácio que está nesta edição do livro, de Guilherme Lopes. Nesta empolgante safra de poesia escrita por mulheres, o livro merecia mais destaque. Certamente nunca se escreveu e publicou tanta poesia como nos últimos tempos, fruto, quem sabe, dessa nossa era em que se busca ansiosamente por coisas inefáveis. Tempos que parecem nos convocar ainda mais a materializar “a linguagem em forma de pureza” (Octávio Paz) ou a ir aos “cernes e medulas” (Pound), ou buscar o que “é fala do infalável” (Goethe), definições de tempos distintos que de alguma forma procuraram a mesma coisa.

O livro da jovem poeta mineira se divide em três seções: Árvore ginecológica, Inventário de fiascos e Esponsais. Estão lá sua memória e uma busca genealógica, pela ancestralidade; está lá certo divertimento com o que ela é e com o que poderia (não) ter sido; estão lá o amor, o corpo, o desejo e os sonhos (ou pesadelos) que essas coisas pressupõem. Tudo isso, repito, tratado com deliciosa fluência em versos bem construídos, diretos e desconcertantes e que por vezes quebram expectativas na leitura, desabrochando em humor sutil:

PEQUENO MILAGRE NO TEMPO

Ter vinte e poucos anos.

Pai e mãe vivos.

O hemograma sem alterações.

Dois reais no bolso da calça.

Uma pinta acima dos lábios.

Um anel de Saturno na cintura.

Um olho clínico para desastres.  


Na mais que sugestiva seção Árvore ginecológica, Mariana põe-se a compor sua genealogia e recria a si mesma e ao seu mundo, mesclando memórias autênticas, inventadas, sonhadas. Está tudo junto (como sempre foi com essas coisas) e inclui uma “pós-memória”, a que incorpora o que ouvimos dos antepassados e que trazem o que existia desde muito antes, remetem a uma ancestralidade, pesquisa particular e interna que agita o que parecia imóvel. E essa recriação é de uma beleza comovente, pois retoma uma tradição familiar, um clã feminino, uma herança ou origem matrilinear escondida e que talvez estivera envergonhada e sufocada. Algo que ela explicita no poema Realismo fantástico: “o sangue da estirpe sempre fala alto”. Aqui, guardadas as distâncias, qualquer semelhança com poemas de Drummond em que há esse tipo de preocupação, pode não ser coincidência, ambos são mineiros. 

Noutro poema, Hereditariedade, é o eu lírico quem vem resgatar e cantar essa herança, ancestralidade que se revela presente no corpo e na alma, ela se recompõe, se forma e se identifica por meio daquela árvore destacada no tempo e se apresenta como herdeira de infortúnios da mãe, da avó, da bisavó...

(...)eu,

sucessora das derrotas de minha mãe,

antecessora das derrotas de minha filha,

não encontro senha,

não encontro emprego,

não encontro a História Oficial,

me sorrindo na fila do SINE,

porque orgulhosamente rejeito,

porque não entoo os hinos,

porque escarro no chão e escarneço

com meus ódios milenares

quando desfila na avenida

o cortejo dos vencedores.


Ela se reconhece numa tradição, mas rejeita e escarnece do “cortejo dos vencedores”, utilização muito apropriada da famosa expressão de Walter Benjamin, trazendo em si a história dessa triste herança de suas ancestrais.

E ainda há mais mineirice nos versos de Mariana, mineirice feminina. Lembram Adélia Prado: “a mulher do povo, mãe de filhos, Adélia./ Faço comida e como./ Aos domingos bato o osso no prato pra chamar o cachorro/e atiro os restos./ Quando dói, grito ai,/ quando é bom, fico bruta”. Lara Alves, que assina a orelha do livro, diz que Mariana “é uma escritora nascida de romance entre Adélia Prado e Hilda Hilst”. Eu só acrescentaria que a presença de Hilda se dá, neste caso, numa mescla com Ana Cristina César. 

Rima amor, humor e dor

O humor, a ironia e a autoironia também recaem sobre as angústias com tranquilidade e leveza na seção Inventário de fiascos. E aqui há mais traços mineiros nas referências religiosas, que aparecem invertidas, se podemos dizer assim, para pensar as mulheres. No poema Rua Glória, n. 60, as matronas do subúrbio (seriam de Sabará?), de cabelos brancos, banhadas e perfumadas com Minancora e Palmolive na hora do Angelus, tem “a mania de sambar nas tumbas/ dos maridos já mortos” (olha Drummond de novo aí!). Devem ser as mesmas matronas viúvas de outro poema, Antropofagia, que comem e bebem para homenagear seus homens quando morrem: “Metade da noite, choramos de saudade./ A outra metade, choramos de alegria”. 

No poema Ave, as Marias compõem uma “genealogia sagrada registrada em cartório” e apostam seus sutiãs entre goles de cerveja para saber o destino de uma delas, cujo noivo já havia feito vasectomia: “dou quinze conto/mais uma caixa de Brahma,/ que o profeta vai sair/ é dali, daquela Maria”. 

Ainda que Sabará não esteja nominada (a cidade oitocentista que ainda “veste com orgulho seus andrajos”, para lembrar Drummond mais uma vez), parece ser lá que vivem as Marias de Ave e de outro poema cujo título é o nome do famoso autor de telenovelas açucaradas, Manoel Carlos. São os folhetins de tevê que fazem sonhar as mulheres do subúrbio à beira da BR 262 com histórias passadas em meio à gente bonita do Leblon. Subúrbio sem Bossa Nova, a trilha sonora do lugar fica por conta da Pour Elise dos caminhões de gás. É essa mesma movimentada BR, promessa de felicidade, que leva – quem pode - ao distante e deslumbrante Atlântico. A novela reúne aquelas mulheres – dos 9 aos 90 - para sonhos e delírios, mulheres que cortam e tingem o cabelo no Salão da Edite desejando tanto “estar noutra pele”, “trocar de nome, de número, de cargo, de CEP, de gene”.

Esse olhar apurado da poeta ainda se volta para o amor, o corpo e o desejo, sem expurgos, na última seção do livro, Esponsais. Pelo contrário, aceitam-se suas contradições. Dores estão presentes como no belo poema Nos correios, em que uma mulher envia seus pedaços para o/a “ex”: “Remeto/ as unhas roídas,/os cabelos caídos/ pelos cantos da casa,/ as lágrimas sepultadas/ no cemitério travesseiro” para que este faça o que quiser, inclusive “o corpo inédito/ de uma nova mulher”

Por vezes os versos parecem tirados de um diário íntimo (e aqui estão mais ecos de Ana Cristina César), permanecendo a ironia e o bom humor: “Os gatos no telhado da casa do seu Wilson não têm compromissos, não têm relógios, não têm tabus. Só têm vontades.” Ou como em versos que parecem pensamentos de mulher consigo mesma diante do ser desejado:

UMA ESFÍNGIE FAMINTA

Decifra-me.

Te devoro mesmo assim.


Ou em flagrante e despudorada (para olhos masculinos arcaicos e inseguros) invocação amorosa:

MAIO, MADURO MAIO

“João, você já foi ao pomar

descascar mexericas (?)

(...)

Cheirou a casca,

estudou o caminho,

talhou a ferida precisa 

com a ternura do homem

que deita sua virgem

e não sabe se geme, se foge,

se portuguesamente chora?

Mordeu os gomos inchados

e sentiu contra o céu da boca

o sal da terra (?)

(...)

E seu eu disser, João,

que estou madura no pé?”


Ainda vamos ouvir falar muito de Mariana Cardoso Carvalho (soube que ela está escrevendo um romance). E esta resenha era mesmo para falar bem do livro. Sigo sempre o que ouvi, certa ocasião, da boca de Tatiana Belinky: é perda de tempo resenhar um livro de que não se goste. Nos teus quadris de parideira garantiu um lugar especial na minha estante.




Nos teus quadris de parideira

Mariana Cardoso Carvalho

Poesia

editora Urutau

2021






Mariana Cardoso Carvalho
nasceu em Belo Horizonte, no verão de 1997. É formada em História pela UFMG e atualmente estuda no Teatro Universitário. Este é o seu primeiro livro publicado. Também escreve no site Sacerdócio Solidão. E tem uma cachorra chamada Olga.








Luiz Henrique Gurgel de Santo André, professor que se debandou para o jornalismo há mais de 20 anos. Trabalhou com projetos editoriais do Estúdio Elifas Andreato, em São Paulo, onde fez parte da equipe de criação e foi um dos editores da revista Almanaque Brasil, extinta publicação de bordo da TAM Linhas Aéreas; ainda com Elifas foi pesquisador e redator da série em fascículos “História do Samba”, lançada pela editora Globo. Participou da equipe de programação da Galeria Olido, centro cultural da Prefeitura de S. Paulo, logo após sua inauguração em 2004, responsável pelas atividades com literatura. Como free-lancer, teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros. Atualmente trabalha com projetos educacionais e está concluindo uma pesquisa de mestrado sobre Carlos Drummond de Andrade na Universidade de São Paulo. Teve reportagens publicadas por Caros Amigos, Revista Brasileiros, Diário do Grande ABC entre outros.