por Catharina Azevedo__
Talvez a verdadeira redenção
sejam esses dedos que se estendem
do outro lado da ponte
de uma página em branco.
Uma tela.
Buscamos com candura
e um quê de uma aceitação agridoce
nos tocar.
Esse toque, tão ínfimo e breve,
que nada pede ou explica,
sabe desfazer-se
no branco vão dos segundos.
Esse ínfimo toque:
talvez o verdadeiro roteiro
da peregrinação incessante.
Nele, uma revelação
surgida no escuro útero do mundo.
Desço a Carlos Gomes
Os pés que construíram essa cidade
são os mesmos que agora vejo
de rotos traços,
suor e calor misturados nas pedras.
Eu desço a Carlos Gomes.
É preciso amar também as pedras,
antes ou depois dos homens.
Pensos nos jasmins de Borges:
os bagos de uva devem estourar na língua,
escorrer na língua,
abraçarem-se na língua
e eu desço a Carlos Gomes.
Fazer arte é bobagem, digo
mas, todo o resto,
também bobagem.
A pele que se enruga ao vento,
os livros que carrego,
tudo a salvo e são.
Os 42 degraus da Lapa,
(ausência de
pressa) escrever
rápido
Não querer pensar.
Parece querer dizer algo,
essa multidão dentro de mim.
Op. 69, nº1
Como Leonora Carrington,
extraio minhas cores dos pulsos.
Índigo, viscoso,
retrato de lua e prata.
Sou uma coruja alquimista.
Em alguma curva do tempo,
eu me deito, escondida
Trapezistas, amores perdidos
— meu mundo é repleto
E rico como
aquarela que se dissolve.
Bailarinas, julietas,
olhares trocam carícias
Digo sim ao eterno,
deus não me intimida.
________
Passar como água sobre as pedras,
seu barulho e seu cristal:
há muito renuncio ao fogo.
Há em mim qualquer coisa
(um véu de prata iridescente)
de nada, seguindo
ao encontro de qualquer terra
que se arrepie ao contato.
Algo de puro, frio e azul.
Se eu sequer tivesse nome —
queria não tê-lo.
O que colore o mar
é só o céu que se espelha.
*poemas do livro Deixe o bando correr selvagem (Mormaço Editorial, 2022), de Catharina Azevedo