Caruncho, de Laura Cohen Rabelo

 


por Adriane Garcia__





Uma exímia violoncelista que vence o racismo, a precariedade material e a segregação do universo da música erudita com seu talento e trabalho, vinda de um país onde há mérito, mas não meritocracia. Um maestro cujo sonho foi comandar sua própria orquestra, realizando seu desejo de sucesso e poder. Um pianista apaixonado pela música e pela violoncelista. São esses os principais personagens que Laura Cohen Rabelo nos traz em Caruncho. Mais do que nos colocar dentro do universo da música de orquestra, coisa que Caruncho alcança de forma inequívoca e eficiente neste romance, a autora nos dá uma história sobre o tempo, sobre as transformações pessoais, interpessoais e profissionais, sobre os caminhos a que nos podem levar o amor e o desamor. 


Caruncho, título muito bem escolhido para abarcar as quase trezentas páginas desta história, fala com precisão das intempéries humanas a que estamos todos sujeitos: degeneração do corpo, doença e morte. Mas há também nascimento, há também mudança e movimentos de salvação. 


Em Caruncho, as personagens não possuem nomes e são tratadas pela denominação de suas profissões, assim temos a Violoncelista, o Maestro, o Pianista. É muito interessante que isso se dê em uma narrativa que já no seu início nos entrega algo surpreendente: como alguém no auge de sua carreira tem coragem de abandonar tudo? E reparemos, “tudo” é a carreira, tudo é o nome dessas profissões que passam a definir a nossa identidade. Uma grande e inteligente questão, ou ainda melhor, uma sensível questão que a autora nos coloca é sobre desistir de algo grandioso aos olhos dos outros, mas que já não faz nenhum sentido para nós. Desistir de algo que nos define – ou que deixamos que nos definisse – a Violoncelista – para ser o quê? O fato é que uma pessoa é muito mais do que sua profissão ou atividade. O fato é que com a passagem do tempo um piano pode ficar carcomido ou podemos descobrir outras fontes de amor, pois no fundo, o que queremos mesmo é amor.


Assim, paradoxos vão sendo retratados: o mundo que opõe força quando a Violoncelista tenta (e o mundo faz isso por meio do Maestro, representante de poder, opressão, patriarcado, machismo e consequente assédio moral e sexual) é o mesmo mundo que manifesta resistência quando a Violoncelista desiste. É como se depois de ter “permitido” que ela mostrasse ao mundo sua “virtuose”, ela agora devesse algo ao mundo, ela agora devesse manter essa identidade participante. Nesses momentos de conflito e oposição em que aquilo que nos fazia feliz agora já não vibra, em que aquilo que um dia fez tanto sentido agora já não faz sentido algum, desistir pode ser mesmo um ato de coragem. Também pode existir a desistência feliz.


O livro apresenta uma estrutura mista: narrado em primeira pessoa pela Violoncelista, que o faz para o Pianista dez anos após o início do relacionamento entre as personagens principais, e em terceira pessoa quando o foco se dirige para o Maestro.  O tempo é não linear, é tanto o presente quanto narração do passado. Laura Cohen Rabelo trabalha essa estrutura de modo impecável, usando um arranjo que em mãos inábeis poderia dificultar a leitura – lembrando que leituras difíceis se dão ou porque o autor é impotente para se comunicar (ele se expressa, mas não se comunica) ou porque crê que seu texto é a Pedra de Roseta sem a qual a humanidade jamais entrará no reino da inteligência. Caruncho é inteligente e capaz de se comunicar, sem soberba, sem afetação. A capacidade de verossimilhança de Laura Cohen Rabelo nos coloca dentro da história, a ambientação é perfeita, os personagens tão reais que juramos que existem em algum lugar e que a autora os conheceu e eles contaram a ela sua história.


Em uma jornada que envolve resolver pendências do passado para seguir em frente com mais liberdade, a Violoncelista nos conta histórias dentro de sua história, como a do Pianista, que precisa curar efeitos terríveis de uma tragédia pessoal que  o lançou na melancolia ou como a de um homem que amando o poder dificultou as relações no trabalho, negou a sua origem judaica, foi hipócrita com a família, com as musicistas, com os amigos, desperdiçando uma vida que podia ter sido muito melhor, sem autenticidade, copiando as piadas alheias para saber se comportar socialmente, e descobrindo que no fim da linha as opções são muito parecidas para todos os que envelhecem: a decadência física, a degradação, o fim da ilusão do super-homem que, no caso do Maestro, precisa ver inferioridade nas mulheres para se autoenganar melhor.


Caruncho é um livro que, quando termina, deixa suas personagens acesas em nossa memória: gente que conhecemos, instrumentos que ouvimos, plateias que frequentamos, sentimentos que compreendemos.



“Aí começou: toda vez que eu tentava me incluir na conversa de vocês dois, eu era imediatamente empurrada para fora. Do outro lado da mesa, você me olhava como se me convidasse a participar dos assuntos, vez ou outra me chamava pelo nome, mas o maestro não parecia estar a fim. Nada mais blindado que a amizade entre dois homens brancos. Quanto mais velhos, mais impermeável é a relação deles.

O maestro me tratava ora com rispidez, ora com tutela. Quando comentei sobre a beleza da cidade, ele disse que sou muito impressionável. Quando falei da coincidência dos trens, ele disse: “eu estava ciente de que isso poderia acontecer, afinal só chegam aqui três trens por dia”.  Falei do conforto do hotel e ele disse: “se você tocar direitinho, podemos te trazer em mais festivais, para ficar em mais hotéis”. Quando comentei da livraria dentro da igreja, o maestro disse que era muito cara, e o acervo era uma porcaria, melhor era a livraria do conservatório. Quando falei da aflição que tive ao me separar do meu cello, ele disse: “quanto drama!”. Quando falei que tinha gostado da programação, ele disse: “ano passado estava muito melhor”. Sei que houve momentos em que o maestro esteve ligeiramente aberto a se comunicar comigo, mas só consigo me lembrar das coisas ruins.” (p. 84/85)



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Caruncho

Laura Cohen Rabelo

Romance

2022

Ed. Impressões de Minas




Laura Cohen Rabelo - Formou-se em Letras e é mestre em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) Ainda (Leme/Impressões de Minas, 2014), Canção sem palavras (Scriptum, 2017) e os livretos de poesia Ferro (Leme/Impresões de Minas, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. É idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde dá oficinas de criação literária e edição desde 2013. Faz parte da coordenação do Selo Leme da editora Impressões de Minas, preparando originais de diversos autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas de criação literária em diversas cidades brasileiras.







Adriane Garcia
, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)