por P. R. Schneider__
De todas as ruínas do mundo aquela mais preservada é também a que mais se deteriora. Esse livro chegou até minhas mãos diante do mar e decidi terminar a leitura da forma como ele me foi dado.
Preciso categorizar uma infinidade de sentimentos que me fluíram durante a leitura e que não possuem ainda um substantivo adequado. Gonçalo não é a personagem central dessa obra; nem mesmo o fantasma de Irene cumpre esse papel; a decomposição da assimilação dos sentimentos de um homem é o que une essas páginas em um ritmo avassalador.
Gonçalo é a personificação do que se mentaliza ser o homem velho, preto, pobre e sem escolaridade. Construído de forma exímia: ele [Gonçalo] chega sim a materializar-se em nossa imaginação e logo se desfaz camaleônico.
Mas eis então o engodo e também a revelação desta obra: a epifania do sentir. O velho em ruínas é a narração de uma quase totalidade das vidas de homens pretos com mais de sessenta anos, é a concatenação de uma realidade crua. Inúmeros Gonçalos percebem que sentem depois de uma longa caminhada onde o sentir era secundário, aliás, sequer existiu ou existe. A narrativa é um caleidoscópio: ao mesmo tempo que te despista também captura a atenção. A figura de Gonçalo não tem obrigação alguma com a meiguice falsária que muitas obras deste nicho nos enfiam goela abaixo, Gonçalo é o que é, e ponto. Não é delicado, mas é sensível, não é excessivamente dramático, mas é revelador a ponto de sufocar-nos em alguns trechos.
Irene como fantasma falhou de modo miserável, sua presença nesse livro é mais viva que a de outros personagens secundários que, na minha opinião de leitor viciado, deveriam ter sido mais explorados e com capítulos particulares. Digo capítulos de forma inconsistente pois não é Gonçalo ou o leitor que dita o ritmo, na verdade a forma como a leitura chega e se contorce dentro de qualquer pressuposto de narrativa que temos.
É um livro que tende a originalidade, entretanto esse assunto já foi discutido e debatido "muito" na literatura; e é aí que mora o traço de genialidade: falar o óbvio é um trabalho difícil. Todo clichê tem um ponto de curva que faz do piegas um Shakespeare. Dizer o que está nítido com a elegância e refinamento que Rafael Silva faz aqui é para poucos. Tomo aqui a liberdade de elevar esse belíssimo ensaio à sapiência de Sérgio Vaz na sua obra Colecionador de Pedras que mesmo se tratando de trabalhos bem distintos tem a poética como fundamento principal e edifica uma verdadeira apoteose. Chamo de ensaio este livro pois sinto que não há exorcismo capaz de livrar tanto o autor quanto o leitor de uma nova leitura sobre Gonçalo ou variações deste. Sem dúvida essa jornada não acabou a página 13 e nem terminou na página 57.
É um dos meus preferidos da atual geração de escritos e escritores do Ceará. Uma leitura agora obrigatória para quem me questionar "por onde anda nossa literatura?". Promover este livro é uma tarefa nossa [leitores] para que mais pérolas como essa sejam escritas, fora isso qualquer comentário que eu faça é dispensável.
Minha nota é 9/10.
*Escritos sobre um velho em ruínas, de Rafael Silva (Selo Mirada,2021)
P. R. Schneider - Eu existo. Isso é o suficiente.