O último voo da arara-canindé, crônica de Anthony de Almeida

 Anthony Almeida__


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Antes de partir de vez, olho o céu. Olho na hora dourada, a hora em que o dia termina. Olho e ouço a saraivada dos pardais — explode no ar a euforia das aves. Se debatem antes da chegada do sereno graúdo e, em breve, dormirão, estarão empoleiradas em galhos de oitizeiros.

Meu olhar para o céu na hora dourada, entretanto, não queria acertar apenas nos pardais triviais. Daqui, de onde parto agora, posso, devo e vou me gabar de uma lindeza que tenho. Amanhã direi que a tive — hoje, porém, ainda a tenho. Enquanto o sereno não vem, procurarei essa beleza olhando para o alto.

Me gabo da minha sorte de cronista que tem uma boa conversa de passarinho para contar. Talvez a conversa nem seja tão boa assim, mas o passarinho é. Símbolo da crônica, todo cronista que se preze já escreveu sobre passarinho. Me gabo do meu — que é, na verdade, passarão.

Passarinho é o tuim criado no dedo de Rubem Braga, ou o próprio cronista, um sabiá cantador; passarinho é o canário cantado por Vinícius de Moraes, que voou da cobertura do velho Braga e provocou a gargalhada do poeta; passarinho, ainda que não tão inho, é o papagaio que só sabe falar "poeta", da anedota de Fernando Sabino; passarinho é o bem-te-vi gago, ouvido por Cecília Meireles; passarinho é a gaivota que sobrevoou Ipanema e fingiu que não viu Paulo Mendes Campos; passarinhos são os sabiás de Luís Henrique Pellanda, um de fitinha presa num dos pés, outro enterrado vivo; passarinho, ainda menos inho, é o urubu morto, de Antônio Maria.

Os meus, e sei que passarão por cima do meu quintal ainda nesta hora dourada, são magníficas araras-canindé. Perdoem-me confrades cronistas urbanos, mas as araras da minha crônica são mais lindas do que qualquer um de vossos passarinhos. Ah, mas no meio da mata é fácil de ver ave bonita, dirão vocês, com certa inveja. Não duvido que seja, minhas araras-canindé, porém, são vistas daqui do miolo da cidade mesmo. 

Elas visitam os quintais dos meus vizinhos venceslauenses, pousam na imbaúba da vizinha do sudoeste e danam-se a conversar, numa gritaria encantadora. Depois, batem suas asas azuis-ultramarinas, exibem seu peito amarelo e pousam na palmeira do vizinho do leste. Nela, bicam coquinhos e grasnam estrondosa e deslumbrantemente. 

Aguardo, aqui deste meu quintal, a passagem de pelo menos uma delas, para que eu veja o seu último voo. Amanhã irei embora, definitivamente, desta casa. Nos últimos meses, fui e voltei, fui e voltei, ensaiei a partida de vez. Amanhã darei adeus a esta casa e às belas araras que flanam por este céu daqui. A casa venceslauense, do número 727, se juntará à prudentina 802, à recifense 113 e à caruaruense 208. Será uma cidade de lembranças e um endereço que já foi meu, testemunhado no verso dos cartões-postais que recebi.

Caso eu queira voltar a ela, serei um intruso, não terei mais acesso aos seus cômodos conhecidos. Os novos inquilinos dormirão num quarto que já foi meu. E, do quintal, certamente se encantarão com o voo das belas araras.

Adeus, Presidente Venceslau.

Adeus, céu de arara-canindé.


Presidente Venceslau/SP. Fevereiro, 2023.









Anthony Almeida
é geógrafo, professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e mora no Recife/PE. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato:
anthonypaalmeida@gmail.com