por Pâmela Rodrigues__
o solo
eu sou filha da sobrevivência
que, não por acaso,
é substantivo feminino
no meu mundo
as mulheres tiveram que ficar
assim, no imperativo
os homens puderam partir,
e alguns foram
não que eles não estivessem lá
estavam
mas não ficavam
pois, se verbo tivesse gênero,
ficar,
também seria feminino
eu trago incrustado no meu DNA
as dores da sobrevivência dessas mulheres
os horrores da miséria
fome
migração
violências
abandono
povoam as minhas memórias
são essas as nossas histórias de família
onde quer que a gente vá
esse peso vem acorrentado aos nossos pés
às vezes, se torna tão grande
que te impede de avançar
então você fica
assim, no imperativo
a subalternidade também é feminina
outro dia minha avó se queixou que ela não pode ser adolescente
me doeu pensar que até isso lhe foi arrancado
nada dos outros para ela
tudo dela para os outros
a doação é feminina
já o saque, é masculino
mesmo quando eu vou longe
me sinto só e pequena
porque as minhas ainda não estão ao meu lado
só dentro de mim
mas teimo
ora rompo barreiras
ora aproveito as portas que elas abriram
vou correr e ocupar o mundo inteiro
as levarei em mim
mas também comigo
quero lembrar ao mundo
que nós importamos
quero lembrá-las que
ainda há tempo para escrever novas histórias
antes de mim
onde é a sua casa?
aquele lugar em que podemos
descalços
fincar os pés e as lágrimas no chão.
quantos silêncios lhe serviram de tijolo?
e quantos gritos de prazer?
que projetos enterrados lhe servem de fundação?
e os abraços de quem vive contigo,
portas fechadas ou não?
para onde deseja ou
tem que voltar quando te falta caminho?
que histórias de família te servem de teto?
e elas te alegram ou doem?
onde o seu coração se aquieta?
aonde você leva os seus sonhos para morrer
a cada novo amanhecer?
a sua casa é refúgio ou prisão?
o que é um lar
areia
desde que se alargaram
minhas margens
novos e incômodos
olhares me cruzam
me atravessam
minhas bordas
se expandiram
e então caminhos
se desenharam
em minha pele
trilhas se abriram
em direção a virilha
rotas que não existiam
desde que eu cresci
em todas as direções
por dentro me afundei
espremida
abaixo de camadas de tecido
músculos
vasos sanguíneos
gordura e pele, metros dela
não sou mais do mesmo tamanho
mesmo que dentro ainda
bata um coração
apequenado pelo medo
minha extensão expressa
o que transbordo
desde que aumentei
de peso e tamanho
me redesenhei
afundo
dentro do oceano
que me tornei
para navegar
mergulhar
afogar
emergir
batizar
novas
necessárias
versões de mim
fase de crescimento
uma mulher sozinha
presa
uma mulher sozinha
pede (?)
uma mulher sozinha
pode
uma mulher sozinha
teme
uma mulher sozinha
encolhe
uma mulher sozinha
escolhe
uma mulher sozinha
é só
uma mulher
cinzas
quando enfim se acende a chama
me desfaço em labaredas
infindável brasa
produzindo faíscas
vermelhas
azuis
laranjas
ardentes
por fim
as inevitáveis
mortíferas
efêmeras
cinzas
fogueira
o convite era
para pôr em ordem
aquela gaveta metafórica
onde achei ser possível esconder
as minhas maiores dores
de mim mesma
não é
gavetas transbordam
mais cedo ou mais tarde
o convite era abstrato
o materializei
decidi pôr em ordem a pior gaveta da casa
torci para que a tarefa durasse horas
não durou
o conforto de olhar
pros parafusos
pilhas
e pequenas ferramentas
logo deu lugar a inadiável necessidade
de me ocupar de outra gaveta
a de dentro do peito
o mundo real é sempre um convite
para fugir do meu infinito
que sempre acaba em abismo
a casa sempre me distrai dos meus
ruídos internos
eu tento controlar e catalogar o caos de fora
porque dentro é só ruína.
gavetas