Quatro poemas de Maria João Cantinho

 por Maria João Cantinho__



Fotos: Erick Mclean, Geronimo Giqueau e David Billings



Sète (diálogo com Paul Valéry)


Do alto vês agora esse espelho azul

e a deitada fulguração do mar, 

serpenteando entre os canais, 

desenhando a perfeição 

desta manhã de verão.


A luz do vento, em irisada dança,

desalinha-nos o coração

e uma voz nasce, entre as águas,

fazendo-se poema, arrebatando-nos, 

enquanto os barcos 

desaparecem no longe

como sonhos esvanecidos.


Escreves a fogo e a água, escreves

E cantas baixinho esse verso que te assalta:

«Qu’un long regard sur le calme des dieux !»


E sou arrastada pela tua voz

assim, chegando-me secreta do passado,

numa embriaguez de imagens,

Passado e presente, acenando-me.


Talvez por estar diante dessa imemorial 

brancura do cemitério marinho, 

o mar a incendiar tudo, a luz

subindo da linha do horizonte

e eu aqui, o teu olhar pousado em mim,

eu aqui, no limiar do poema, 

fora e dentro de mim, regresso à voz,

no infinito recomeço do canto.


In «Escopro e Luz»


Como se fôssemos pássaros


Os pássaros em formação sobre o rio

nesta tarde de inverno

não sei porquê, lembram-me o poema de Yeats,

incendiando a imaginação.


A ponte que se divisa

na névoa do dia

não sei porquê, evoca-me um certo adagio, lentíssimo.


E não sei como

memória e evocação cruzam-se no poema

enquanto contemplo do alto

a vida da cidade.


A história do poema

irrompe no olhar

inútil poema inútil olhar

apenas a beleza deste instante sobrevive

para depois se perder 

na urdidura dos dias.


Mas este poema

nascente da inutilidade do olhar

permanece, como gesto

em que inscreves o instante

na eternidade.


Fly (Eunaudi)


Quando a beleza te assaltar

deixa que ela voe

e segue-lhe o rasto,

não a demores

porque é dela o segredo do instante.


Desce sobre nós e toca-nos

assim, apanhando-nos 

num relance, desprevenidos,

a nós que somos tomados

pela escuridão dos dias

e apenas sabemos atravessar

o vidro e a névoa da solidão.


Quando a beleza te assaltar

liberta-a de ti sem a agarrares

e segue-lhe o rasto

flutuando acima da escuridão

e da névoa que te tem prisioneiro.



Memorial do holocausto


Como poderia escrever um poema

mesmo que me pedisses

sobre esse momento 

em que o violinista ecoa no silêncio 

evocando o horror.

E de repente lembro

os violinos do poema de Celan

tocando na neve de Auschwitz,

a cinza de Sulamith 

e penso no baque dos corpos caindo.


Todavia, cai uma neve fina

e no silêncio da manhã

ecoam os cânticos do rabi

diante do memorial.

É o tempo do Zakhor

e para onde te voltares

a História acompanhar-te-á

os mortos que trazemos dentro de nós

as vozes que nos  assombram

e aqueles que te olham do passado

pedindo-te a redenção.


Cai uma neve fina

no silêncio da manhã

e tu escreves o poema.





Maria João Cantinho nasceu em Lisboa, em 1963. Estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde defendeu dissertação de doutoramento. Com diversas publicações científicas em revistas académicas, é actualmente professora do ensino secundário. Membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Collége d’Études Juives (Université Sorbonne IV), organizou vários congressos na área de Filosofia, bem como co-editou diversos livros sobre vários autores (Celan, Levinas, María Zambrano, Walter Benjamin). Colabora em diversas revistas de literatura. Publicou 5 livros de ficção (em Portugal e no Brasil) e quatro livros de poesia, bem como três livros de ensaio. Foi nomeada como finalista do Prémio Telecom, em 2006, com o livro “Caligrafia da Solidão” e foi nomeada como uma das ensaístas do ano com a sua obra “O Anjo Melancólico” pelo Professor Eduardo Prado Coelho, foi vencedora do Prémio Glória de Sant’anna em 2017, pela sua obra «Do Ínfimo» e foi galardoada com o Prémio PEN ensaio em 2020, pelo seu ensaio «Walter Benjamin: Melancolia e Revolução». É Directora da Revista Caliban. É membro da Direcção do PEN Clube Português e membro da APCL.