Trechos do livro Meu caminho de volta para casa, de Dani Floresani

 por Dani Floresani__







TRECHO 1 (páginas 17, 18 e 19)


Foi em meio a essa situação de vulnerabilidade que veio a decisão de me mudar. Senti que o melhor que eu poderia fazer era atravessar aquele momento ao lado da minha mãe.


Lembro-me bem do momento em que me decidi. Estava trabalhando, quando recebi da fisioterapeuta da minha mãe um vídeo em que ela caminhava dentro na piscina. Ao ver aquelas imagens, fui capturada por uma emoção muito forte e comecei a chorar, porque na ocasião a doença já havia avançado e ela já necessitava da cadeira de rodas para se locomover.


Ao vê-la naquela piscina, de pé, pude experimentar um pouco do que ela estaria sentindo. Agradeci àquelas águas que suavizaram sua gravidade e a fizeram sorrir... E quando eu me conectei, através da telinha do celular, com a sua sensação de liberdade, eu tive certeza de que eu tinha que ir.


De que eu queria ir.


*


A mudança implicaria sair da capital paulista e partir para Três Lagoas, Mato Grosso do Sul, onde vivia minha família.


Apesar de ter sido criada naquela terra, eu já vivia longe desde os 14 anos, quando saí para estudar. A mudança para Três Lagoas não seria confortável, porque eu já estava acostumada à vida da metrópole. Mas lá estavam guardadas as memórias de minhas aventuras, o eco das minhas gargalhadas, a liberdade de correr na fazenda, de fazer bagunça na cozinha, de tomar banho de mangueira... enfim, de ser uma criança livre.


Nada fácil, nada difícil, apenas uma decisão que eu não gostaria de ter tomado. Porém, ela foi inspirada por uma estranha certeza. O próximo passo seria, então, tomar todas as providências práticas para aquela transição. 


Haveria alguns desapegos a fazer e eu teria de dizer adeus a muita coisa. Pausaria, pelo menos momentaneamente, uma carreira construída ao longo de anos de pesquisa e estudos realizados em São Paulo, nos Estados Unidos e na China, onde me especializei. A indefinição do tempo que eu ficaria fora exigia que eu me despedisse do meu emprego.


Não era pouco para deixar. Eu adorava praticar acupuntura esportiva, os atletas que eu atendia haviam se tornado amigos queridos e o lugar onde trabalhava era um espaço de descobertas e constante acolhimento. Foram tempos incríveis, de muita dedicação, repletos de alegrias e amizades que se perpetuam até hoje.


Porém, nada disso me fez oscilar, tampouco ficar tentada a desfazer as malas. Eu não estava partindo por um “senso de dever”, ou por culpa, não me sentia obrigada a nada. Era mais uma intuição do porvir. Uma escolha consciente, um desejo genuíno de ficar próxima da minha mãe naquele momento tão difícil, dividir e construir memórias dos momentos que nos restavam.


(Poderiam ser anos ou meses, nada se sabia.)


Eu estava firme na minha decisão, que se transformava em uma certeza integrativa, uma força impulsionadora. Daquelas que não oferecem mais explicações além do sentimento de verdade que acompanha cada ato na direção apontada, mas que deixam nosso “antigo eu” num vácuo de respostas tão grande que só nos cabe confiar.


E agir.


TRECHO 2 (páginas 102, 103, 104 e 105)


Preciso daquela certeza

A de que pertenço.


A segurança do amor

O voo como a esperança

A beleza que enche a alma

O nascer do dia dentro de mim.


Aquela risada do coração

Ligada na sacralidade da poesia.


Conversei com Deus

Ele sussurrou para mim: você é meu infinito.


Enquanto isso no caos cotidiano…


Mas nem só de conversas e escritas eram feitas as horas as horas daqueles dias. Na verdade, na esfera do tempo ordinário, o que eu mais vivia era um turbilhão constante de afazeres. 


Ao longo daquele 2018, precisei me acostumar com uma rotina completamente diferente da que eu havia vivido até então: praticamente a administração de uma enfermaria. No começo da doença, a fisioterapeuta da minha mãe havia se oferecido para fazer esse trabalho. Elas eram muito próximas, mas logo intuí que não se poderia fazer essa administração à distância, como uma ajuda. Eram muitos os detalhes, um trânsito muito grande de profissionais, uma responsabilidade imensa para se dar conta, e, por mais que alguém tivesse a boa vontade de fazer, era um trabalho para se acompanhar de perto, e a todo instante.


Então, mesmo sem nenhuma experiência, passado um tempo, assumi. E fui aprendendo aos poucos.


O número de enfermeiras foi aumentando gradualmente. Eram duas pela manhã e uma à tarde. Depois, à noite, chegavam mais duas profissionais, que ficavam até de manhã, com rodízio. Dia sim, dia não. Nos finais de semana havia mais uma para revezar. O time ainda contemplava a fisioterapeuta e a fonodióloga, além das funcionárias da casa: a faxineira, a passadeira e a cozinheira, que havia sido contratada para fazer alimentos especiais, mais pastosos, além de preparar as refeições para essa multidão toda. E não eram poucas! Era feito um bolo por dia, além de café passado com frequência e uma conta aberta na padaria para pegarem pão pela manhã. A mesa estava sempre posta, sempre havia algo a se beliscar. Era importante que todas as pessoas ali se sentissem bem. 


Por mais que esse “time” possa dar a impressão de que eu pudesse ter tudo sob controle, não era bem isso que acontecia. Eram muitas pessoas circulando, todas com sua vida pessoal, seus problemas e os problemas entre elas. A rotina profissional se misturava à novela que acabava se estabelecendo, as transferências de responsabilidade, as conversas paralelas… Além da gestão da doença, a administração de todas as questões emocionais que ali circulavam também fazia parte da rotina.


Era tudo muito delicado. Eu tinha que prestar atenção aos olhares, ver se havia alguma coisa que pudesse gerar alguma desatenção. Atender, respirar e estar no “aqui e agora” sem distrações, porque qualquer erro poderia ser muito prejudicial para minha mãe.


Aos poucos, fui me acostumando a ser uma regente de cuidadoras enquanto pastoreava minhas próprias dores. Nessas horas, eu pensava:


Calma, Dani, respira fundo e tenta fazer o melhor nesse momento.


Acredita que vai ter uma solução...



TRECHO 3 (páginas 133 e 134)


Esse foi o nosso acordo. 


Em cada lugar que eu visito, eu me lembro dela.


Ou nos detalhes da mesa posta: a sequência dos talheres, de fora para dentro.


Ela sempre nos ensinou a desfrutar a vida. Meu pai trabalhava feito louco e minha mãe sempre deu jeito de fazer o que ela queria. Para fora, viagens e mais viagens. Para dentro, os livros. Muitos livros.


Ela amava ler. Romances, livros históricos, livros políticos... Trajetórias de mulheres, como as de Isabel Allende.


As viagens, internas ou externas, sempre salvam a gente.



Um coração dilacerado percorre

Cada parte do corpo até encontrar descanso


As estrelas nos lembrando

Que dentro somos céu

O universo inteiro


Deus é tudo isso.

Faz morada dentro e fora

E quando o coração sangra

Ele espera nosso chamado



Nascida em São Paulo (SP), Dani Floresani passou a infância em Três Lagoas (MS). É formada em Psicologia. Na Califórnia (EUA), onde morou por 11 anos, tornou-se mestre em Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Também se especializou no tema na China e, após regressar ao Brasil, continuou seus estudos em terapias energéticas integradas à sua prática. Trabalhou, a partir da MTC, com atletas, com foco na preparação e recuperação para competições esportivas. Foi professora na Faculdade EBRAMEC, em São Paulo e no Rio de Janeiro. É pesquisadora de Artes Cênicas desde a infância, quando participou de grupos de estudos teatrais como Ventoforte e Grupo Tapa. Começou a escrever poesia em 2018 e estreia na literatura com “Meu caminho de volta para casa”, lançado pela editora Paraquedas. Paralelamente à literatura, a escritora também se dedica a um novo projeto: o ingresso na dramaturgia.