Dois poemas do livro Memórias do Esquecimento, de Joaquim Cesário de Mello

 por Joaquim Cesário de Mello__







PRAIA DE BOA VIAGEM




Vim do sal das águas

e do pó das areias 

da Praia de Boa Viagem

onde dei os primeiros passos

com pés manchados de piches 

denguices e ingenuidades 


À beira-mar do mundo

esculpi-me de cascalhos e seixos

como se fosse um monumento

feito de arrecifes ao mar


Um pouco antes de 64 

me mudaram de lá

para uma casa em Santo Amaro

que ficava em frente ao cemitério

que não me dizia nada


No céu da minha idade de agora

moro de novo em Boa Viagem

assistindo ao final das tardes

o sol se mudar de horizonte

no apagar da praia de outrora


Trago restos de sargaço

nos meus cabelos

e na pele o suor das maresias

e quando meus olhos gotejam

são de pingos salgados de mar


Hoje entendo o linguajar 

e o idioma dos cemitérios



TUDO SERÁ PERMITIDO



Depois que eu morrer

meu deus morrerá comigo

e nada mais terá sentido

e a vida deixará por mim

de ser como antes era vivida


Dostoiévski estava certo 

sem deus existindo

tudo então será permitido


Será permitido o Sol acordar

iluminando o quarto em que não vou estar

ser noite no Leste enquanto é dia no Oeste

continuar a nascer nebulosas no lado de lá

e ao Cometa Harley de novo por aqui passar


Será permitido as recentes infâncias

brincarem de ser crianças

aos jovens cedo se apaixonarem

aos quinze anos acreditando 

na eternidade dos amores debutantes

e aos adultos comprarem casas financiadas

garantidas pelas hipotecas bancárias


Será permitido aos velhos envelhecerem

no prolongar da longevidade

alguns contraindo músculos faciais

espichando carnes

colocando Botox

lipoesculturando abdomens

e polindo as máscaras da idade


Quando meu deus morrer

depois que eu tiver sumido

então tudo será permitido







Joaquim Cesário de Mello -
 Psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Escritor e poeta, participou de várias antologias literárias, entre elas Nouveaux Brésils Fin de Sciècle (Universidade de Toulouse, França, 2000), Poesia Viva do Recife (CEPE, 1996), Cronistas de Pernambuco (Carpe Diem, 2010), Poesia na Escola (Palavra & Arte, 2021). Em final da década de 80 participou do Movimento de Escritores Independentes e foi cronista do Encarte Cultural do Jornal do Commercio (PE) entre 1998-2002. Autor dos livros Dialética Terapeuta (Litoral, 2003), A Alma Humana (Labrador, 2018), A Psicologia nos Ditados Populares (Labrador, 2020), A Vida Como Um Espanto (Labrador, 2022) e No Cemitério das Nuvens (Folheando, 2022)