Poemas do livro O cobre e os figos, de Thays Horst

 por Thays Horst__







Poema 14, localizado nas páginas 47, 48 e 49

te estendo a mão
como um faminto na beira
da calçada, a costela
quebrada
sem um lugar para sofrer

você me deu uma vida
que eu não pedi
e confesso
não poder fazer muito

rasguei a pele
além do sangue
o vestígio
de células mortas
embaixo das unhas
o ar vedado
na traqueia
transformando
cada suspiro
em massa de concreto
pesando mais
do que os ossos

posso voltar
para tudo aquilo
e ainda não saberia
como receber
essa violência
sem encontrar meu corpo
em nocaute
no chão
anos depois

foi no meu aniversário de 14
ou no seu
de 36
não sei se isso importa
te estendi a mão todas as vezes
enquanto seu desamparo
era permeável
é verdade quando dizem
algumas cenas acontecem
em câmera lenta
não lembraria de outra forma
também não lembro dos meus outros aniversários
e de mais nada que eu quisesse te dizer
naquela hora

talvez
seja tarde
ou saturado demais
mas é vivo
e real
todos os dias

me aninho
me encolho
existo resumida
na fraqueza
na cegueira iminente
no punho
empurrado
dentro da garganta

desisto todos os dias de você
para não desistir de vez
de mim

***

Poema 27, localizado nas páginas 91, 92, 93, 94


o dano no tato fino

vibração 

e consciência proprioceptiva 

do corpo

para o córtex cerebral

as pernas sem saber

apontar 

esquerda

direita

e se eu não atravessasse 

aquela rua

não usasse salto alto

na areia da praia

e você risse

enquanto ecoava

here comes the sun

e se você não me abandonasse 

no meio da rua

às quatro da manhã

e eu corresse atrás do seu carro

todo o caminho de volta

e se você não beijasse

tantas bocas

eu sozinha

naqueles degraus

pensando na sorte

que eu tinha, ter você

e se você não ficasse bravo

por eu te acordar

todas as manhãs 

em que eu corria 

para sua cama

pedia desculpas 

e voltava para casa

e se você não tivesse 

humilhado meu corpo

depois de ter tocado

e fingido amar

para comparar 

com outros corpos

que nunca terei

e se você não trouxesse flores

do jeito mais brega

de pedir desculpas

cada vez em que esquecia

que eu existia na sua vida

little darling

e se você não tivesse

quebrado o banheiro 

quando eu perguntava

se você falava a verdade

porque eu já não conseguia

acreditar em você

e meus ombros pulavam 

para trás

e se você não tivesse 

transado com outra pessoa

e só me contasse 

quando que descobri 

sozinha

e se tivéssemos filhos

e depois

netos

se eu acordasse aos domingos 

e ainda assasse tortas de maçã

e vivesse presa em você

talvez

no fim

ainda fosse como 

evelyn mchale

e não tivesse vencido o medo

nem encontrado minha própria 

voz

força

solitude

não sei se inventamos os monstros

ou se os reconhecemos



***


Poema 32, localizado nas páginas 106 e 107

vomita suas flores
no meu corpo nu
me diz que esse medo
é irreal
e que sou toda uma floresta
imensa

finca seu amor
na minha solidão
feito a agulha que costura
o rasgo do meu peito

segura a sua leveza
nos meus pulmões cansados
de doer quando eu respiro

não parta o que não se pode
consertar
mas parte sua delicadeza
e despeja no meu coração

tenho dores em lugares
que deveriam florir
e me destruo
dentro dos sonhos

tenho amores escorrendo
sobre cada fio dos cabelos

mas não sobra
nada
nada
para mim

eu existo no vazio


***

Poema 44, localizado nas páginas 150, 151, 152, 153, 154 e 155

eu lembro de quando
encostávamos a testa
no cabo de vassoura
fechávamos os olhos
e girávamos
girávamos
até a tontura
enfraquecer nossas pernas
enquanto nossas mãos
tateavam o ar

de quando você viajou doze horas
para me ver
a gente pegou um barco
e atracou numas pedras escuras
era pôr do sol
mas havia uma neblina lustrosa
os meus cabelos ruivos
em contraste com os seus
lembro dos seus olhos tristes
enquanto você provavelmente
pensava o mesmo dos meus
sentamos onde as ondas quebravam
quase molhando nossos pés
e apenas encostamos a cabeça
nos ombros
uma da outra
e ficamos em silêncio

nós sabíamos dos anos todos que perdemos
mas eu tenho você
e você tem a mim

hoje eu acordei
e haviam me enviado
uma foto do meu aniversário
dez anos
a mesa cheia
o bolo de chocolate
o arco de balões
o sorriso no meu rosto
você sabe como é
engolir em seco
ao mesmo tempo em que
nossa cabeça começa a girar
igual a vassoura
na nossa testa
e você ouve
as pessoas no fundo
gritando
e gritando
não gire tão rápido
você vai cair
você pode se machucar
mas você precisava provar
que conseguia girar mais rápido

passei um café de um gosto duvidoso
sentei em cima das minhas pernas
e devo ter chorado
por uma
duas horas

o amor
em todas as suas formas
é um ataque cardíaco

foi de repente
como um sobressalto
e a dor estava aqui
eu reconheço
todos os rostos
que mataram aquela criança
mas ninguém lembra

somos criaturas cruéis
com um poder que não deveria existir

eu corria descalça
a poeira no chão
os cabelos longos
uma floresta selvagem
e a primavera nos meus olhos
se perguntassem
do que eu mais me lembro
seria do vento
no rosto
quase me sentia bonita

o silêncio
a poeira na mesa
o mundo era difícil sob aquele teto
quando eu crescer
quero ser diferente
mas hoje sou todas aquelas partes
sem cura
ele tinha raiva de mim
e hoje eu também tenho
somos parecidos por isso

ana
se eu pudesse te ligar agora
e pedir para que você parasse
tudo o que está fazendo
mesmo que você esteja na livraria
queria o seu ombro
para encostar devagar
e lembrar daquela respiração salgada
o arrebol tão frio
as luvas congeladas
e você repetia
que eu era boa demais

eu queria que aquela
fosse uma simples foto de aniversário
mas era só mais uma infância abusiva
e mais tarde
um casamento abusivo

eu nunca me tratei
da maneira
que os outros não me tratavam
até os vinte e três
eu pensava que era normal
essa espurcícia
e depravação

todos os dias
são uma infância
que eu perdi
e não posso
ter de volta

***

Poema 49, localizado nas páginas 171, 172, 173

você me contou
que um mestre vietnamita
chamado thich nhat hanh
comenta que a vida só pode ser encontrada no momento presente
após me debruçar
sobre a bancada de quartzo branco
e lamentar minhas preocupações futuras
e o quanto ainda moro no meu passado
você sabe que te escuto
e aperta seus olhos com ar de mistério
para dentro dos meus

eu amo a forma como você me ama

te agradeço sempre por isso
você diz que não é nada difícil
passa os dedos nos meus
e sorri
enquanto fita outra página de um livro

você me ensinou sobre o que é bom
e pertencimento
sobre juntar meus pedaços
e seguir em frente
no maior dos clichês
mas também com toda a verdade
que isso tem

eu amo a forma como te amo

te descreveria em livros e livros
te arranharia a pele
com a força que me jogo em você
me derreto pela sua gentileza
trejeitos
e as mãos jogando os cabelos para trás

cabemos dentro do outro
sem precisar de ajustes
e me salva com a sua coragem
de enfrentar meus demônios

somos apenas duas pessoas
incomuns demais
para não se conhecerem

***






Thays Horst (@niphred), 31 anos, nasceu em Florianópolis/SC e escreve desde os 15 anos em blogs autorais. Encontrou no bullying, numa infância solitária, no transtorno de personalidade borderline e em múltiplas personalidades a beleza na complexidade da dor. Estudante de psicologia, descobriu nas aulas de anatomia um interesse visceral de descrever os sentimentos. Tem 5 gatos – Bilbo, Aragorn, Isaac Newton, Mirtilo e Geleia, e também o amor de sua vida, sua cachorrinha Moon. “O cobre e os figos”, publicado pela Editora Paraquedas, é seu livro de estreia.