por Tiago Feijó__
“O que se narrará adiante bem poderia ter sido um sonho. O filho mesmo, que ainda dorme como um feto no apoucado espaço desta poltrona de hospital, quando acordar, não saberá ao certo se acordou para a vida ou para um sonho. Vagaroso, tardará um bom tempo até se dar conta de que o ar que respira está carregado do conhecido cheiro de hospital que o persegue há dias, que o toque das suas mãos no ombro do doente lhe comunica a realidade tátil esperada de um toque em acordado, que os sons das palavras absurdas proferidas pelo enfermo são tão nítidos quanto os sons das palavras verdadeiramente pronunciadas, que as gotas de sangue que salpicam o chão ao redor do pai são também vermelhas, como vermelho é o sangue de todo homem. Diante desta realidade tão facilmente detectável, Antônio concluirá, ainda letárgico, que aquilo, não sendo um sonho, é mesmo a realidade deste instante, como são igualmente reais os sete dias em que já estão neste hospital.”(pág. 9)
“Crescerá agora entre eles um silêncio grande, Antônio escutará um falatório no corredor onde está, moverá a cabeça em busca de pessoas, encontrará apenas a si mesmo. De repente, ecoará um grito abafado vindo de dentro das paredes. Uma porta se abrirá no meio do corredor e dois enfermeiros sairão às pressas conduzindo uma maca, passarão correndo por ele, os olhos de Antônio seguirão o corpo da criança desacordada deslizando sobre rodas. No encalço dela, um a um, uma família inteira sairá pela mesma porta: um velho, uma mulher e duas meninas, a maior delas sustentará entre as mãos um rosto atormentado de pânico.” (pág. 20)
“O homem faz planos, nós sabemos. Pinta um futuro inteiro cheio de metas e objetivos. Mal abre os olhos sonolentos pela manhã e já vislumbra à frente um cotidiano todo ordenado, concatenado, roteiro traçado sobre o mapa da vida, desde esta primeira hora da manhã até aquela última hora da noite, quando fechará novamente os olhos para um novo sono. Todo o nosso dia cadenciado assim na ponta das horas. Mas a vida nem sempre se deixa ordenar, nem sempre permite ao relógio regular todas as nossas vontades. A vida, misteriosa como ela só, às vezes nos abre uns rasgões no tecido grosso da realidade, umas brechas, umas frestas aqui e ali, pelas quais podemos nos meter no intuito de escaparmos à ordem das coisas e do dia.” (pág. 31)
“O que Antônio divisa pelo intervalo do portão semiaberto é também um homem velho, ou antes não tão velho pelos anos que carrega, mas completamente envelhecido pela vida que levou. A cabeleira, ainda que basta, está toda grisalha, como grisalha está também toda a barba. No rosto do pai, ele surpreende uma espécie de mapa do tempo e suas marcas, visto que ali cruzam e recruzam muitas e fundas rugas, feito velhos caminhos traçados sobre o chão exausto de uma pele amarelada e ressequida. No olhar do senhor Raul, o filho desvenda uma escuridão de tristeza imensa, apagada quase toda a luz, como se um irreversível cansaço negasse àqueles olhos o seu ofício de ver e olhar, uns olhos de voluntária cegueira.” (pág. 55)
Tiago Feijó é professor e escritor. Formou-se em Letras Clássicas pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de Literatura 2014. É autor dos livros “Insolitudes” (7letras, 2015), “Diário da casa arruinada” (Penalux, 2017), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e “Doze dias” (Penalux, 2022). Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura.