por Vitória Gabriela__
A liberdade não vem
não é coisa que lhe aconteça
terei sempre de ir eu.
Sónia Balacó.
Ajoelhada em milhos com buracos na pele grossa dos joelhos, que por si só já são coisas dobráveis e adaptáveis e como são; se adequam a lesão. Inaiê pensa no que fez, no que querem que ela pense, se questiona porque pega tantos caminhos para acabar em terras desconhecidas das quais ela sequer admira. Repetitiva. Sente a raiva correr para fora de seu corpo minúsculo e opressor em forma de água, com o seu peso sem cor e seu sabor temperado, apimentado. Gritam seu nome, mas ela não responde, não se reconhece com aquele nome. Como poderia? Nem lhe perguntaram se o queria. Pensa em gritar, mas não haveria ouvintes interessados em escutar. Entre gritos, lágrimas e milhos ela escolhe imaginar.
Imagina que está correndo em campos grandes como o do filme que havia visto antes, que seus joelhos caem de esgotamento e a dor é só parte do divertimento. Nesses campos, quando gritam seu nome é com doçura na voz, porque quando se chama quem ama nunca é com pressa, nunca é com praticidade. E nessa ilusão quando a chamam o fazem por preocupação e não por obrigação. Nessa fantasia, sua repetição errônea é compreendida. Afinal, quem a pararia se não fosse a compreensão?
Algumas horas depois, quando a pele do joelho já estava dormente há muito tempo e seus olhos já eram calçadas sem árvores em uma manhã ensolarada após uma noite tempestuosa, a tia se pôs dura como um pedaço de pau e rosnou um "saí”. Ela não podia acreditar. Estava livre dos milhos e a chave das algemas eram só três letras cuspidas. Livre. Apenas três letras. Passou 3 dias pensando em 3 letras. Sabia que sim e não também possuíam 3 letras, embora o não só seja quem é por conta do tio folgado que vive acima de sua cabeça. Inaiê concluiu que a liberdade nasce da junção de três letras, a liberdade é o que vem após o nascimento de trigêmeos diferentes, que juntos são donos de todas as chaves do mundo, herdeiros de todas as possibilidades. Inaiê descobriu seu poder quando se assustou com a tragédia das palavras.
No terceiro dia, achou que seria simbólico correr atrás do que queria. Arrancou uma folha da espiral do caderno de ciência, pegou uma caneta vermelha (porque havia entendido que o vermelho é sempre sinal de reprovação, resultado negativo de alguma ação.) E começou sua declaração: “Você não tem medo, tia? Não tem medo de que eu alcance sua idade e descubra que você, na verdade, de nada sabe? Seu escudo são os anos que eu não posso alcançar enquanto você continua me colocando para ajoelhar, mas eu sei que quando estiver lá, quando estiver aí, quando finalmente conseguir pular todos os trampolins, vou descobrir que poder você abriga, que tipo de autoridade lhe é cedida, e vou ter noção de que não é nada além de fingimento, você não sabe o que faz e vai continuar com esse escudo, se apoiando nessa lacuna que nos afasta, vai continuar agindo como se soubesse mais, mas você não sabe!!! Vou alcançar todos os seus números e saberei toda sua farsa. Te odeio.”
Escreveu no papel, mas não o deu. Torceu para que fazer metade do que gostaria que fosse feito, fosse o suficiente para acalmar os nervos sedentos por mais, mas não foi. Era preciso mais. Os nervos já haviam dito antes e repetem agora: é preciso mais. Esperou completar treze para começar a dizer não, porque havia lido que aos 13 deixava de ser criança, e após isso, nunca mais parou. Vez ou outra sentia saudade do sim, da submissão forçada na privação cotidiana, mas ele estava tão afundado, enterrado na própria garganta que não alcançava os lábios.
Conforme crescia, se via com a vontade esquisita de parar estranhos na rua e perguntar para onde iam, porque ela não entendia como todos pareciam tão certos e diretos e ela era a única perdida, como isso acontecia? Ela também queria uma direção, queria ir para onde todos vão. Uma vez sua tia a ouviu falar sobre isso sozinha e lhe disse que as pessoas não seguem a mesma direção, mas ela respondeu que a questão não é qual e sim se há alguma.
Amou centenas de vezes. Amou o sol das 18h, que dizia um constante até logo e mudava as cores de todo o céu por poucos minutos após ficar horas brilhando, e ela considerava aquilo um presente. Amou a mariposa que morava na entrada de uma casa velha localizada no centro, porque a mariposa encantava uns, assustava outros sem esforço. Ficava quieta, pousada e dificilmente era notada, e era assim que ela queria ser mencionada. Amou a descoberta da música, e odiou sua impotência porque ao achar uma música bonita ela desejava se tornar a música, queria que as pessoas se sentissem sobre ela da mesma maneira que ela se sentia sobre a música. Queria se pendurar nesses instantes de tempo que somem no ar, nas notas que afundavam dentro das pessoas. Amou o estranho que sentou ao seu lado em uma orquestra, amou a ideia de quem imaginava que ele fosse. Amou a funcionária de um museu que ficava sentada no elevador e dizia coisas gentis enquanto apertava os botões dos andares que ela queria visitar, mas não chamou elevador quando decidiu ir embora, desceu de escada como forma de agradecimento. Não sabia se isso fazia algum sentido, mas preferiu não pensar muito. Amou no passado e ama no presente, como forma de tentar dar à luz a liberdade que nasce após as 3 letras, repete amo, amo, amo como quem espera a salvação na próxima palavra, assim como quem te relata essa história espera a salvação no próximo parágrafo. Inaiê pensa que é muito fácil amar, se olhar as coisas devagar. Difícil era se lembrar de olhar as coisas devagar.
Quando lhe faltava o não, lhe faltava voz. Como quando foi acusada de roubar o dinheiro do casaco da prima, mas ela disse que nem sabia onde o casaco estava e quando não acreditaram, ela não conseguiu se defender. E quando a mandaram para longe, ela não conseguiu dizer não. “Não faria diferença se dissesse”, pensou enquanto olhava pela janela do ônibus e puxava a alavanca da poltrona. Fechava os olhos e se achava vermelha por dentro, sempre em atenção, reprovação, inapropriada… Sentia dentro de si, só para si, uma sirene 24/7 enquanto seu coração pulsava… Pensava na própria anatomia, pensava em seus órgãos banhados em líquidos, molhados, sozinhos na escuridão do seu corpo. Se sentia esquisita e de certa forma feliz, pois se sentia real. Se seu fígado funcionava perfeitamente, como disse a médica, ela que o carregava, também existia. E funcionava. Embora constantemente ignorada. Como se já tivesse morrido e sido cremada. Poeira entre aqueles que dizem saber do que se trata quando ela é chamada e citada, porém não sabem de nada além das verdades inventadas.
Nas poucas vezes em que pensou nas pessoas que a colocaram no mundo, pensou com indiferença. Sabia que carregava os traços de quem nunca havia visto, como pode isso? Tinha um caderno só para as perguntas que faria para a mãe, se tivesse uma. Como pode isso? Era a primeira delas. Perguntas nunca feitas, respostas nunca recebidas. Eu mereço isso? Era a segunda. E Eu sinto isso? Eu entendo isso? O que é isso? Eram suas seguidoras. Para o pai invisível restava a vontade de ser abraçada, restava a necessidade de ser acolhida apesar da constante indagação e dos nervos que desejavam mais e mais. Necessidade nunca percebida, necessidade nunca saciada.
Cresceu, acima de tudo, ligeira com os homens mais velhos. Não dava abertura para ser mal interpretada, mas embora soubesse que todos os homens (independente da idade) acabam por carregarem em si a possibilidade, Inaiê acabava relaxando perto de jovens como ela. Só para aprender que não devia relaxar nunca. As mãos continuam ali após não estarem mais. Às vezes a única comunicação de um homem é a invasão. Isso é nojento, mas "é assim que as coisas são". Pelo menos foi o que sua tia afirmou quando ela reclamou. Em algum momento das horas, minutos, dias, a admiração masculina se diluía, até se ter a forma de um poder desprezível, Inaiê não entendia o que eles queriam comunicar, nem se eles queriam que ela entendesse. Ela aprendeu a se defender quando entendeu que a luta seria para viver, enquanto vivesse.
Tentando achar a paixão pela vida, tentando ser a beleza da música, fez parte de grupos que nunca fizeram parte dela, doou para causas que usaram sua pele como pano de chão para limpar sujeiras que ela nunca ajudou a derrubar, até então. Sentia-se sempre errada, não importava o que fazia, no fim do dia era a própria criminosa, traindo, sequestrando, roubando e esfaqueando a si mesma. Acreditava na não-sabença de Oswald de Andrade, depois descobriu a de Amália, que virou seu modo de vida, poema recitado até para quem não seria capaz de ouvi-la.
NADA SABEMOS
Nunca saberemos se os enganados são os sentidos ou os sentimentos, se viaja o comboio ou a nossa ânsia, se as cidades mudam de lugar ou se todas as casas são as mesmas. Nunca saberemos se quem nos espera é quem deve esperar-nos, nem sequer quem temos de esperar no meio de uma plataforma fria. Nada sabemos. Avançamos às cegas perguntando se isto que se parece com a alegria é apenas o sinal inequívoco de que nos enganamos novamente.
Amália Batista.
Com o tempo descobriu que bem e mal, bom e mau também possuem três letras. Mas isso não a fazia entender a linha tênue onde a maldade nascia, onde deixava de ser reproduzida, deixava de ser consequência e fazia parte das pessoas. Reconhecer isso, seria reconhecer a própria maldade. Quem seria capaz?
Aqui, agora, não poucos, mas também não muitos anos após aprender das portas que o não abre, na beira do cano de uma arma, ela diz sim. Entrega tudo que tem, confia na honestidade de quem nunca viu. Para todas as perguntas, ela diz sim, sim, sim e dessa vez esperando salvação no próximo sim. Esperando que o ciclo de repetição a salve. Fecha os olhos e pensa em Edimburgo, na Escócia, onde nunca esteve além de em sonhos. Pensa que o gatilho é o guardião do fim. Sim, sim, sim. Inaiê se pergunta se já foi amada, e pensa se alguém ou quem sentiria sua falta… concluí que nada disso importa, não viveu para os outros e não está morrendo por eles. Amou centenas de vezes. Viveu bem. Pensou na própria história no verbo passado como se já estivesse no próprio funeral sentido falta de si mesma, chorando por si mesma. Sim, sim, sim.
Vitória Gabriela tem 20 anos (2002) e jeito com as palavras. Nascida em São Paulo- SP, filha de pais baianos, escreve desde a infância e atualmente além de possuir material disponibilizado on-line, participou da antologia Alma em Letras (Editora Exílio do Jaguar) e da antologia Poesia Viva 2022 (Coletivo Fomento Literário).