por Adriane Garcia__
A menos que se vá fazer uma obra ensaística de fôlego, só é possível falar da poesia contemporânea brasileira escrita por mulheres, nos anos mais recentes, como breve explanação. Isso porque tal produção é profícua, múltipla em vozes, estilos, temas, formas e acontece de norte a sul, de leste a oeste do país. Aqui, tratarei de uma pequena amostra, citando algumas delas e seus poemas, deixando de fora outra miríade de poetas e trabalhos, também qualitativos. No trajeto, limitada por trabalhar com 21 poetas, procurarei, pelo menos, representar todas as regiões brasileiras, sabendo que a desigualdade dos meios de produção e divulgação privilegiam algumas regiões, fazendo, por conseguinte, com que conheçamos mais facilmente os trabalhos de poetas inseridas no eixo sul-sudeste.
É preciso falar em destaque da poesia escrita por mulheres, já que a diferença de tratamento quanto ao gênero persiste como uma das bases do sistema que gere os meios de produção. Isso situa a mulher na luta pela inserção e igualdade em todos os espaços – e não seria diferente no campo literário, que traz os vícios da sociedade na qual se insere. Há uma longa história sobre a proibição de as mulheres poderem ler e escrever e sobre a luta por esse direito. Publicar é outro salto. Não é difícil fazermos um reexame de nossa formação de leitoras/leitores nos anos escolares, principalmente, para constatarmos que tal formação se deu lendo privilegiadamente homens brancos, de classe média. As vozes enunciadoras eram essas e tais vozes é que (com raras exceções) falavam sobre a existência, o mundo, a humanidade. No cânone, poucas escritoras conseguiram a façanha de sair da margem, sendo que para a mulher negra, indígena e/ou pobre, há uma dupla ou tripla marginalidade. De certa forma, foi também lendo sobre as mulheres vistas por homens que nos formamos.
Hoje, cada vez mais, mulheres escrevem, publicam livros, analisam-nos, estudam-nos nas academias, nos clubes de leitura, nos canais de vídeo na internet, levam-nos para seus espaços de divulgação, muitos deles criados por elas próprias. Com o uso das redes sociais, a divulgação antes limitada aos veículos tradicionais (geralmente gerenciados por homens) passou a se expandir. A proliferação de pequenas editoras também impulsionou a publicação de autoras, isso tudo aliado a uma consciência cada vez maior, mas ainda incompleta, sobre a importância de não se alijar o ponto de vista e a criação daquela parte que constitui metade da humanidade. Nos últimos anos, as mulheres têm conseguido ganhar muitos prêmios literários, isso quando se nota também a preocupação (e a exigência manifesta das escritoras) de elas comporem, juntamente com os homens, as curadorias de festivais, revistas, prêmios.
A seguir, a pequeníssima amostra dessa produção, no gênero poesia, apenas para exemplificar o que cada leitora ou leitor pode encontrar na poesia brasileira contemporânea. Para isso, escolhi 21 livros escritos por mulheres, publicados a partir de 2016, sobre os quais apresento uma sinopse e um poema.
Mineira, Líria Porto, em Cadela prateada (ed. Penalux, 2016) constrói um livro temático que gravita em torno da Lua. Trabalha versos com sua costumeira fluidez, criatividade, síntese, erotismo e ironia. Seus poemas são ricos em nuances, inversões, duplos e triplos sentidos, misturando reflexão e humor. Com grande capacidade rítmica, causa prazer pela sonoridade, usando as quebras para ampliar o sentido (inversão, susto ou surpresa). Ao escolher a Lua como metáfora central, Líria Porto fala sobre a mulher, os relacionamentos, a amamentação, o sexo, a política, a solidão, a morte e o tempo:
adiamentos
a lua esperava o sol
redonda um talismã
quando ela se despiu
ficou de manhã
o sol lambia a lua
o meio o lado as beiras
lamberia a face oculta
a nuvem veio
só amanhã
Paranaense, Andréia Carvalho Gavita, em Papel leopHardo (Mariana Edições, 2016) nos guia por um mundo arcaico que cruza com a pós-modernidade, em um encontro de mitologias e descobertas tecnológicas, cultura erudita e popular, termos que pertencem ao ocultismo ou à biologia mais atual, tudo isso numa espécie de escrita oracular – “decifra-me ou te devoro”. A poeta dialoga com o Simbolismo e o Barroco, utilizando uma profusão de significantes, em grande riqueza semântica, estabelecendo um dicionário próprio – porque inusual – mas que é partilhado de modo arquetípico. Mística, esoterismo, metafísica, psicanálise, em aproximação com a natureza e a matéria primordial:
ainda me chamo pangeia. fermento o ectoplasma randômico no fogão a lenha. para que o trigo avance pela chaminé e alimente os pássaros com o sonho totêmico das árvores genealógicas. até que no corpo nutrido da ave, a onomatopeia de um mito, pandêmico e intacto, suplante o grasnido dos aviões.
Cearense/mineira, Thais Guimarães, em Jogo de facas (ed. Quixote, 2016) realiza um projeto de inteligência e muita sensibilidade. Esse livro, orgânico, faz a forma encontrar o tema. Os versos são – o próprio título do livro já revela – da família cabralina; sem excessos, o corte se faz com exatidão e faca afiada, ritmo e essência. Das metáforas da guerra, dos instrumentos perfurantes, tesoura, navalha, gume, a poeta constrói um livro que usa de violência e delicadeza para falar das dores do existir:
ode à cebola
dentro da casca a casca
guarda outra casca
no espaço
entre lascas
o aço
entre dedos
o cheiro
entre olhos
antigo laço
entre lágrimas
ódio
picado
nas mãos
perícia
paciência
tato
Baiana, Kátia Borges, em O exercício da distração (ed. Penalux, 2017) lança um olhar para a poesia das coisas, dos objetos, dos nossos atos cotidianos que conseguem nos distrair da obrigação, da rotina dos relógios. Dividido em três partes, “Como se fosse o órgão vivo”, “Fugas extraordinárias” e “As pequenas vilanias da cidade”, o livro se comunica o tempo todo com seu título. A distração, a inadaptação, o mundo como um não-lugar para os sensíveis, a violência de um sistema que desconsidera o lirismo das coisas, máquina do capital a massacrar as pessoas, explorá-las, matá-las, cotidianamente, enquanto buscam a sobrevivência e o amor:
Teu movimento
Antes que te chame
o pelotão de fuzilamento
repara o pássaro
apara o dia.
Há um olhar que se derrama
lento sobre a vigia
e graciosidade no andar
do carcereiro.
Antes, sim, que chamem
o teu nome, anota
num papel ou na parede
certo verso de cimento.
Na argamassa firme
teu movimento.
Catarinense, Isadora Kriegger, em Explorações cardiomitológicas (Editora da Casa, 2018) faz uma viagem no coração e no inconsciente, as “compensações oníricas”. É das próprias saudades, encontros e despedidas dessa pessoa-lírica que os poemas vão se constituir, podendo ser lidos como partes de um poema único. O livro é uma carta de amor aos seus e à pessoa desconhecida que a lerá (leitora/leitor), mas que foi escrita sem se pensar no destinatário, para melhor ouvir o remetente. Para além dos sentimentos, a poeta também está dizendo de uma ética do encontro e da coexistência, não só entre seres humanos, mas entre ser humano, pedra, pássaro, floresta:
tento colocar entre nós o espelho duplo deus/ humano
tento mostrar que os afrescos nos pertencem mutuamente
os murais estarem divididos não significa que as crianças, o bosque, a ponte, as árvores [floridas sejam realidades apenas tuas. não significa que as serpentes, o lodo, a lua, os [peixes escuros sejam realidades apenas minhas.
mas para alguém que escreve tantas derivações da palavra “tentativa”, e para alguém que [ignora todas as formas que tal palavra toma mesmo debaixo de escombros, não haveria [outro destino além do fracasso:
continuamos sentados um de costas para o outro.
Paraibana, Débora Gil Pantaleão, em Objeto ar (ed. Escalera, 2018) estabelece um diálogo com o livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector. Os versos buscam o inefável, o impalpável, na busca existencial pelo sentido e pelo não-sentido da vida. Assim como no livro de Clarice, predominam um senso panteísta e o paradoxo tudo-nada, que também pode não ser paradoxo, mas a integração de algo Uno. Objeto ar nos diz dos relacionamentos, da tentativa de vivenciar o amor, em uma poesia feita ora de silêncios e versos curtos, ora de fluxos narrativos e associações de pensamentos que dão em uma logopeia inusitada:
corpo sonho
como
a
carne
cuspo
os
ossos
engulo
me
e
logo
há
luz
Paulista, Ellen Maria, em Gravidade (ed. Patuá, 2018) dá à luz um livro sobre gravidez, parto, nascimento, corpo feminino, morte e herança matriarcal. Em versos que nada desperdiçam, a poeta consegue emocionar, reconstruindo um universo amoroso e dolorido sobre cuidar e ser mulher, mãe de outra mulher, avó de uma mulher, neta, filha. Um livro sobre afetos que coloca no centro de suas questões a aprendizagem do feminino e seus questionamentos, a aquisição dos conhecimentos de sobrevivência e a aquisição da própria língua, que é materna:
antes do mar
vem mãe
depois do ponto final
letra maiúscula
ela que é sábia
de seu lugar observa
a escrita das pedras que acabo de cruzar
a partir daí, filha
o livro é teu
Pernambucana, Cida Pedrosa, em Solo para vialejo (ed. CEPE, 2019) elabora uma narrativa épica e lírica em que a procura das origens se constitui no leitmotiv da obra. Por meio de uma espécie de história musical afetiva, Cida Pedrosa reconstrói o lugar e suas gentes – Bodocó, Sertão do Araripe, Pernambuco, Brasil, as Américas – mas não buscando aquilo que é oficial, e sim o que foi silenciado diante do racismo, do machismo, da exclusão. É a procura do ser negro (representando também o ser indígena, o ser pobre e o ser mulher) que guiará o poema, um poema solo, que se utiliza de vários recursos formais da poesia, inclusive do poema visual, sem se prender a nenhum deles:
quase todos os filhos de bodocó vieram ao
mundo pelas mãos de mãe hermínia parteira
de ofício senhora de muitos saberes e sempre
a postos para a luz quando a parturiente residia
longe montava de lado no lombo de um animal
ou era transportada por dois homens em uma
rede sempre acudia às mulheres nessa hora de
solidão coragem e fé suas mãos além de darem a
vida tocavam a música das missas domingueiras
em uma serafina de dois pedais e teclas de
marfim comprada às suas próprias expensas
Amazonense, Wanda Monteiro, em A liturgia do tempo e outros silêncios (ed. Patuá, 2019) reflete sobre o absurdo da impermanência. A ilusão é descortinada. O tempo é e não é, “mera percepção mental – flutuante”, porém a percepção é a de que se nasce, envelhece e morre. Wanda Monteiro apresenta o tempo como chão móvel onde colocamos nossos pés; chão inseguro, vertiginoso, percebido por enganosos sentidos. De tempo, avança para espaço. Nada em nós é confiável para definições. Um livro que pensa filosoficamente a condição humana e a busca existencial em meio à efemeridade, às limitações da memória, enquanto tenta se salvar na linguagem:
o tempo fala ao teu ouvido
palavra-precipício
rasga teu pensamento ao meio
abre fina fenda
funda – escura
tira-te o fôlego
faz tua boca escassa de voz
podes ouvir os passos das palavras em fuga
o ranger de seus ossos ferindo o deserto do teu peito
é tudo tão silêncio em teu chão
e tu não sabes que o poema morreu
Mineira, Nívea Sabino, em Interiorana (edição própria, 2ª edição, 2019) constrói uma poesia que escancara a discriminação social, racial, de gênero, mas também fala da busca de um sentido existencial. Nívea Sabino é slamer; a poesia falada, aquela que “não vive presa na livraria” certamente trouxe para o livro muitas de suas características, fincadas na oralidade. Na preocupação estética com a palavra escrita, que se verifica nos seus muitos jogos silábicos/semânticos ou na forma visual em que o poema habita a página, a poeta oferece um livro bonito e que emociona:
MEU TRAÇO
Falar sobre mim
é de uma imensidão
sem rastro
Transito
me acho
No infinito
do que me permito
do que eu faço
Não minto
disfarço
Caminho
neste mundo vasto
de encontros
de acasos
Profundo acaso
ou destino
do meu passo
no sem lugar
para o qual
eu me laço
Mato-grossense, Ryane Leão, em Jamais peço desculpas por me derramar (ed. Planeta, 2019) realiza uma poesia de celebração da mulher negra, ressaltando que a dor não é a única faceta dessa experiência de estar no mundo, apesar de muito presente. Com as marcas da poesia falada, cujo ritmo trazem sua vivência de slamer, Ryane Leão convoca outras mulheres a se verem com bons olhos, escreve numa escrita solidária, que busca a sabedoria das ancestrais e a transmissão do conhecimento que se vai adquirindo no próprio viver para falar com as demais. Um livro sobre a difícil tarefa de viver, mas que exalta a força e a beleza que há nessa tarefa.
celebre a mulher
que você está se tornando
não tape os ouvidos
ela está te chamando
ela dança com o fogo
ela é pancada mas também é doce
ela sempre foi sua melhor escolha
ela é tudo aquilo
que sobreviveu
Gaúcha, Ana Santos, em Fabulário (ed. Confraria do Vento, 2019) se utiliza das memórias de infância, construindo um museu de lembranças, em que as peças voláteis denotam tragédia e mágica. Habilmente, procura o elo entre presente e passado, tocando em pontos comuns da memória coletiva, valores, sentimentos, sensações e estabelecendo, pela identificação, um diálogo com a leitora/o leitor. Ana Santos sublinha a importância da memória como aquilo que nos constitui primordialmente, salvando-se, com a palavra, do risco do apagamento que a todo tempo nos lembra a morte:
ACALANTO
Dorme, filhinho.
Velo o que sonhas
dentro da noite.
Do mal da vida,
mamãe não pode
mais te salvar.
Capixaba, Fabíola Mazzini, em Rotina dos ossos (ed. Cousa, 2020) constrói uma coletânea de poemas que abriga temas diversos, das tragédias sociais ao sentimento individual de solidão, da condição feminina às frustrações por não resolver os problemas do mundo. Muito evocado, o amor surge como solução ausente, pois o medo é a força paralisante que toma conta dos seres humanos. Em versos muito bonitos, não raro com cenário de mar, a poeta leva a leitora/o leitor a refletir sobre a rotina de sermos quem somos, sobre a passagem fugaz do ser na Terra, “pó que retorna ao pó”, ossos:
Não é o relógio que te acorda
Não se dorme mais 8 horas por noite
Os sonhos são esquecidos a cada manhã
Todo mundo rouba o tempo do outro
Ela vigia o olhar do amado a cada crepúsculo
A vigília é um caracol em seu labirinto
O tempo gruda no corpo que queria mais da vida
É nossa anatomia, pedra e abismo
Somos o homem que morre
Pensando que fugiu da cela
Que já lhe habita o osso
Amazonense, Márcia Wayna Kambeba, em Saberes da floresta (ed. Jandaíra, 2020), compõe seus poemas entre reflexões que registram sua história pessoal e parte da história coletiva de seu povo, os omágua/kambeba. Em um país que já teve milhares de línguas indígenas e hoje registra menos de duas centenas, a sobrevivência deste legado é uma das maiores provas de resistência dos povos originários contra o apagamento e a extinção de seus corpos e cultura. A poeta cria poemas nos quais a floresta encontra um espaço para falar, em versos que se utilizam de rimas, incluindo palavras do vocabulário omágua/kambeba, destacando uma relação de orgulho e pertencimento étnico:
Voa pajé, renasce payé,
Rodopia aguçando a visão
Dança com o maracá da união
O saber que vem dos espíritos.
Da cuia o som vai brotar
Anunciando os guerreiros Tupinambá
Em seu canto invocavam o povo Maracá
Dizimados um dia, como espíritos vão falar:
Sany! Cumyssa aua Maracá,
Tana may sangara sany indá supy sapukatara!
Hei pajé! Iawaxima aua supy curata caiçuma.
Mineira, Ana Elisa Ribeiro, em Dicionários de imprecisões (ed. Impressões de Minas, 2ª ed., 2020) constrói poemas como verbetes poéticos, escrevendo um dicionário afetivo, onde cabem diversos temas e reflexões: do amor à política, do machismo ao exercício da escrita. A poeta/linguista traz para esse dicionário sua atenção para a palavra em si, para seus significados, ao mesmo tempo que nos apresenta um formato de poema lúdico, brincando de ser outra coisa, falando sério com humor:
Filho
Substantivo, aqui masculino e sujeito a plural
1. Diz-se daquele que nasce das entranhas de alguém.
2. Diz-se daquele que se forma a partir da matriz biológica
de seus pais e nasce das entranhas da mulher.
3. Diz-se daquele que pode ser adotado por pessoas
dispostas ao amor.
4. Diz-se daquele que provê céus e infernos a outrem.
5. É extremamente comum que tenha como mãe uma puta.
6. É também comum que não sejam mesmo putas suas mães.
7. Os pais escapam a essas acusações.
8. Os dicionários não podem definir essas relações
satisfatoriamente.
Cearense, Jarid Arraes, em Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (ed. Companhia das Letras, 2020) compõe 15 cordéis, cada um dedicado a uma heroína negra: escritoras, abolicionistas, fundadoras de quilombos, guerreiras pela liberdade, políticas, professoras, mulheres que se rebelaram frente ao machismo, ao racismo e à escravidão, servindo de exemplo revolucionário para as demais. Um livro delicioso de ler, embalado pelo ritmo arredondado dos cordéis e pela riqueza que uniu oralidade e pesquisa contra o silenciamento da história das mulheres. Aqui, coloco um excerto do cordel Antonieta de Barros:
Por seu grande caráter
Era muito admirada
Pelos seus jovens alunos
Ela era celebrada
Porque era obstinada
Coerente e respeitada.
Já na década de trinta
Se juntou ao movimento
Por Progresso Feminino
Exigido no momento
Era a FBPF
Com que teve envolvimento.
Conto ainda mais um fato
Que ela protagonizou
E marcou a nossa história
Como líder de valor
Pois abriu mais uma porta
Pro futuro que chegou.
Deputada federal
Antonieta se tornou
A primeira do estado
Como assim se registrou
E foi a primeira negra
Que o país efetivou.
Alagoana, Natália Agra, em Noite de São João (Corsário Satã, 2020) faz acordar uma pergunta da infância: para onde é que as pessoas vão depois que morrem? Os poemas são criados a partir de lembranças e deslembranças, de alegrias e tragédias familiares, daquilo que o fogo queima para atiçar e daquilo que queima para dar fim. Neste livro, a poeta trabalha temas universais como a saudade, a finitude, a memória, o esquecimento e a identidade construída com aqueles com os quais convivemos um dia:
EVOCAÇÃO
Para o tio Jonas que, assim como São Francisco, foi um grande protetor dos animais (in memoriam)
alguém
dizia: “pula a fogueira!”
no fim da tarde
fechava-se a ciranda
ainda respiro
aquele contorno cigano
como vapor na chaleira
espeto o milho na brasa
deixo que ardam nos olhos
os últimos anos felizes da família
mesmo que nunca sobrevivam à fumaça
sempre que retorno
encontro as janelas cobertas
o jardim vazio, as festas submersas
no esquecimento
de novo a criança soluça
o silêncio absoluto da navalha
Pernambucana, Micheliny Verunschk, em O movimento dos pássaros (ed. Martelo, 2020) compõe um livro temático a partir do tema/vocábulo “pássaro”. Com grande capacidade lírica, utiliza a palavra temática como mote metalinguístico, além de construir, a partir dela, reflexões de uma rica logopeia, que vai do poema/pássaro para o cotidiano, a memória, a condição humana e suas dores, as tragédias sociais (no país e no mundo), a morte, o amor. O movimento dos pássaros é profícuo em imagens e utiliza versos atravessados por elementos da natureza. O resultado é um livro bonito, escrito por uma poeta com grande domínio de ritmo, com grande domínio da linguagem poética como um todo, capaz não só de se expressar, mas de comunicar a sua palavra:
sobre armadilhas
meu pé esquerdo lateja
um coração que bate
descompassado
dentro do meu calcanhar
um coração de ossos
com um pequeno pássaro
sangrante e dolorido no seu centro
um coração deslocado
ataviado por uma rede de nervos
que reverbera um nome.
meu pé esquerdo lateja
poderia ser um reino ou uma estrela.
a cidade, pouso para pássaros precários.
Norte-rio-grandense, Regina Azevedo, em Lança-chamas (ed. Peirópolis, 2021) faz uso de versos na maioria das vezes curtos, livres, usando o mínimo de pontuação, Regina Azevedo constrói uma poesia limpa e objetiva, sem qualquer intenção de ornamento, fiel à proposta temática dos poemas. É exatamente por isso que pode nos surpreender com um verso que parece ter saído, de repente, de uma associação livre. É justamente por saber dosar as figuras de linguagem, que Regina Azevedo consegue dar “rasteiras” em quem está lendo. Com encadeamentos que usam um tom prosaico, por vezes Regina Azevedo interrompe o fluxo com a inserção de um assunto que parece estar deslocado, mas que registra o trânsito de vivências e informações que nos assombram e atravessam:
festejo ao fogo
só por um segundo
sob teu peito
o farfalhar do outono
e o que você fazia
em festejo ao fogo
a ponta dos dedos
ao relento
traquejo singular da labareda
misto de calmaria e lampejo
numa dança descabelada
a língua pronta para o surgimento
da manhã
o espírito de cavalo colorido
no ato de trocar os óculos com você
e te olhar de baixo
o minério que dorme na pele
o desafio que doma o segundo
a ginga que derrete as ondas
cheiro tônico diante do espelho
o rugido e o anúncio
do tropeço no ritual:
um orgasmo estupendo
anestesia contra as bombas
de efeito moral
Paulista, Michaela Schmaedel, em Paisagens inclinadas (ed. 7 Letras, 2022) realiza uma poesia de concisão, marcada por grandes imagens. De olhar aguçado e sensibilidade apurada, a poeta dá conta, em poemas e versos curtos, de comunicar ideias de integração do todo utilizando paisagens, seres e suas interações com o mundo subjetivo da persona-lírica. Também comparecem com frequência o amor e uma certa aceitação do inevitável, um tom melancólico convive com uma sabedoria de luta. Paisagens inclinadas traz poemas de alta carga filosófica. Com uma poesia “cênica”, “fotográfica”, esse livro revela um trabalho de sintaxe e temática de pleno domínio e voz marcante:
Solidão
A semente selvagem
denominador comum
das ilusões que vagam
nas grandes cidades.
Entre arranha-céus
uma gaivota gira
fantasmagórica
na noite de verão.
Olhar para cima
é o que se faz
enquanto nos arrancam
o coração.
Mineira, Silvana Guimarães, em O corpo inútil (no prelo) organiza uma antologia que reúne grande parte de seus poemas, escritos ao longo das duas últimas décadas, sendo a maioria a partir de 2012. O corpo inútil trabalha temas como saudade, amor, política, desigualdade social, relações de mãe e filha, morte, a condição feminina e a violência contra a mulher. Silvana Guimarães utiliza ora um tom confessional, ora um tom narrativo e exterior cheio de humor, ironia e profundidade. Seu olhar para cenas cotidianas ilumina aspectos de afetividade, tragédia e lirismo:
Mamuskas
a trisavó cresceu com a mania de recolher nuncas
a bisavó passou a vida colecionando nãos
a avó, entre rezas, reunia quimeras
a mãe empilhava lamúrias
ela habituou-se aos muros
a filha junta janelas
a neta, pássaros
Dessa breve demonstração, podemos concluir pela multiplicidade de temas e por uma heterogeneidade estilística, com tendência ao verso curto. Com exceção das autoras Ryane Leão e Jarid Arrraes, as poetas aqui citadas têm seus trabalhos no gênero publicados em tiragens menores, por pequenas e médias editoras. Como bem nos explica a pesquisadora Regina Dalcastagnè em seu livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (ed. Horizonte, 2012), a ampliação dos espaços de publicação não implica, necessariamente, que todos os espaços tenham a mesma valoração, mas são importantes quando “o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele”. Essa visibilidade frequenta um sistema de hierarquias que para ser modificado requer consciência sobre sua existência e luta contínua para democratizá-lo. Assim como, de modo geral, é preciso democratizar o acesso à leitura, por meio de políticas públicas.
Com os avanços dos movimentos políticos e sociais ligados às minorias, como o Movimento Negro, o Feminismo, os movimentos LGBTQ+, os movimentos por moradias ou os movimentos ligados a pessoas com necessidades especiais, alguns conceitos têm sido modificados e, com eles, nosso modo de ler. Desconfiamos mais, não temos dúvidas de que a literatura também é um campo de poder; não cremos mais tão cegamente naquilo que foi consagrado. Somos outras leitoras, outros leitores, mais inclusivas (os), com uma maior abertura para outras vozes que falam, traços de vivências particulares e cultura imaterial de grupos que ainda não vieram compor nossa percepção. Esse movimento ainda é marginal (e aqui dizemos marginal em oposição a central), mas precisa se equalizar, até o momento em que não precisemos mais de um adjetivo para colocar após a palavra literatura, pois a inserção de várias vozes se tornou “natural”.
Precisamos lutar por um mundo comum. Hannah Arendt nos diz em A condição humana (ed. Forense Universitária, 2001) que “O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva.” A poesia escrita por mulheres traz outras vozes enunciadoras, desautomatiza a linguagem e a experiência de subalternização a que as mulheres foram relegadas e contra a qual sempre lutaram, registra subjetividades dos vários espaços de origem e experiências e cumpre um papel social de ruptura, quando instala o ponto de vista silenciado, quando enfrenta o papel que lhe foi atribuído – no mundo privado – e vai à esfera pública construir páginas desta arte e deste saber coletivo chamado Literatura.
*Ensaio também publicado na Revista Laudelinas XII em 08 de março de 2023.