Estranho sentimento do tempo, crônica de Luiz Henrique Gurgel

 

por Luiz Henrique Gurgel__





Um pequeno espanto me ocorreu ao saber que meu avô faria 140 anos em 2023. “Os mortos não vivem senão em nós. Fora de nós é que talvez deixaram de viver para o que se chama tempo”, disse o Drummond num poema, falando justamente de seus mortos.

Estranhei, pensei no tempo e num avô – desses que quase todo mundo tem ou teve, que nos põe no colo e brinca de serra, serra, serrador, se é que ainda existem avôs que brincam assim – mas este meu nasceu no século 19, antes da Proclamação da República e jamais fez serrador comigo.

Talvez, a sensação mais próxima de algo pleno seja poder perceber e quase tocar os anos mais marcantes da vida vivida, tudo aquilo que se experimentou e permaneceu fincado ou encarnado em nós, acessível à memória voluntária, aquela que nós mesmos provocamos. Ou, melhor ainda, à memória involuntária, a que surge sem querer e repentina no mais absoluto acaso e desvela o que parecia completamente perdido, gerando um enorme êxtase quando vem. São relances, vozes, pessoas, sabores, amigos, músicas, amores, filhos, cheiros, coisas que de repente cintilam e que continuarão a partir disso cintilando em nós, sentidas como partes integrantes de nossos órgãos e tecidos. Não custa lembrar que é do escritor francês Marcel Proust a mais famosa descrição disso.

Sem falar, também, naquele outro tanto de imagens e sensações vivas dentro da gente, mas que não se viveu propriamente, situações de outros, que nos contaram e que acabamos por incorporar como nossas de modo tão natural que depois geram dúvidas, não se sabe se foi a gente mesmo que viveu ou se teria sido o outro, aquele que nos contou.

Assim tecemos o que somos ou o que achamos que somos.

Lá trás, aos 84 anos do avô, eu devia ser apenas mais um entre as duas dezenas de netos que ele já tinha. Quando nos conhecemos, não me viu, estava cego. Também não lembro dele, eu, bebê, menos de dois anos, idade que quase não deixa lembranças que possamos acessar voluntariamente, ficam só aquelas nuances, as imprecisas imagens e sensações de algo vivido, um vapor opaco e nebuloso. Ele devia ser mais um sujeito enrugadinho que eu era obrigado a beijar sob sanção dos meus pais. Será que meu cheiro lhe pareceu atavicamente familiar? Teriam ficado traços suficientes e perdidos no meu pequeno corpo em que ele se reconhecesse, como se sentisse um outro tipo de memória? Talvez a pele morena, se ele pudesse me ver, mais próxima do seu clã e da sua mulher, a avó, funcionaria como elo, sinal de origem, pelo menos mais perto da pele dele do que da família branquela da mãe da criança, lá do sudeste. Penso nisso olhando o seu retrato, que não me responde, só me fita, quem sabe se contemplando nos meus olhos embaçados.

Sei que ele saiu do Aracati para mascatear pelos rios do Amazonas aos 17 anos, em 1900, bem na entrada do século. Viu seringueiro ser flechado e árvores imensas cortadas para virar lenha dos batelões a vapor que subiam e desciam o Negro e o Solimões. Depois, voltou ao Ceará, conheceu a adolescente que virou sua mulher e no Iguatu viu sua loja saqueada, tecidos espalhados e esvoaçando nas mãos de um povo maltrapilho e armado que corria para todo lado, era o exército de camponeses do Padre Cícero, em 1914, de quem teve de fugir. Corria o boato de que era partidário do governador Franco Rabelo, inimigo político do santo do Cariri. Aventuras contadas para meu pai, o filho homem caçula que ficou com o mesmo nome dele.

A mim, além do velho relógio que não marca mais o tempo e de um radinho de pilha mudo, ficou sua última, viva e desconhecida presença na voz gravada originalmente em fita de rolo, por outro filho que também adotou seu nome. A voz está fraca, mas entusiasmada declamando ritmadamente as desventuras do poeta Alcindo e da pastora Glaura.

Há movimento ou pelo menos sensação de movimento nesse modo de sentir o tempo. Ainda que pareça o movimento de um parafuso espanado, que gira e se altera, se desgasta, dá volteios num vai e vem que não sai do lugar, apesar do movimento. A ideia de que se vai de um tempo para outro não parece fazer sentido, pensando assim. É como se houvesse um tempo contínuo e único, e o nosso consumir-se fosse inerente, independe das voltas que a Terra dá em torno do Sol, do Sol pela Via Láctea, da Via Láctea pela...

Tudo isso só por lembrar que perdi o avô no tempo, estranho jeito de perceber, numa tarde de abril, uma vaga ideia de família viajando através da carne ou por um rio de sangue que corre...

no tempo.






Luiz Henrique Gurgel
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020).