Trechos do livro Manual das decepções de uma vida comum

 por Ana Elisa Granziela___









O sono


Um banho relaxante, 

Uma xícara de chá.

Cheiro de hidratante nos antebraços.

As páginas do livro se dissolvem na meia-luz. 

O clique do abajur.

O escuro esfria o corpo por debaixo do lençol. 

Cobertas que abraçam.

Um suspiro longo que abre a boca num bocejo. 

Costas pesadas no colchão.

Travesseiro de lavanda. 

Rosto suave, sem expressão.

Uma imagem de sonho por trás das pálpebras. 

Não lembro se paguei a conta de luz.

Ela não respondeu meu Whats.

Acho que preenchi o formulário errado. 

Deixei roupa no varal e vai chover.

Puta que pariu.

Não consigo dormir.



A santa


CLING!, fez a louça da pia, no meio daquele CHUÁAA de lavar talheres, e Lúcia despertou de um sonho para a busca do ruído misterioso, passando os olhos pelas manchas de detergente azul e bolonhesa, até encontrar o perpetrador do ruído, que era aquela santinha de ouro, fininha feito uma hóstia, que carregara na corrente do pescoço desde o dia em que nasceu, presente da mãe e da vó e da bisa, corrente de santa que santificava sua história, constante santidade feminina que pesava na família e que agora pulava na piscina de carne e sabão sem saber se lava ou se suja, nadando, arrastada pela corrente, a corrente quebrada no pescoço de Lúcia, que, cansada de ser a santa que lava a louça, queria ser a louca que dança, e pensou, assim, por que é que não fazia nada, e nadava a santa, e segurava a faca e a esponja suja, e sujava a santa de molho de carne, e molhava os olhos naquela figura que nadava, que afogava, feito bruxa que não boia, menos sabão mais carne, descendo num molho vermelho, um sangue que escorre, cling cling cling se debate no ralo, gira, gira, gira, gira a santa, canta a santa, grita a bruxa, chupa a água e o som do alívio é PLUP!



O testamento


Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., advogado há trinta e oito anos, amigo pessoal da falecida, entrou em sua sala austera e escura para encontrar sete ex-maridos e uma mulher mais jovem, cujo olhar deixava escapar confusão no meio de sobrancelhas prepotentes. Ela vestia um conjuntinho de saia e blazer de linho rosa-bebê, com as marcas de todas as vezes que sentou e levantou no caminho até ali, e pelo menos seis peças de joalheria completamente inapropriadas para a ocasião. Os sete ex-maridos, por sua vez, vinham em tamanhos, posturas, cores e texturas tão diversas quanto os insetos de uma floresta tropical; ainda que todos tivessem mais ou menos a mesma idade e exatamente o dobro da idade da mulher. Ocupavam todas as cadeiras e banquinhos disponíveis naquele escritório de advocacia, à exceção da poltrona giratória de couro caramelo que aguardava o traseiro de Dr. Terêncio.

Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., que passara, ao longo dos anos, a apreciar a tensão silenciosa que precedia toda leitura de testamento, ajeitou-se confortavelmente em seu assento, coçou a garganta com um pigarrear cartunesco, e inspirou e expirou bem devagar, enquanto olhava para o papel em sua mão. Eram tantos pés batendo nervosos e dedos tamborilando ansiosos, que poderiam bem fazer tremer uma ponte pênsil.

Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr. apresentou-se e agradeceu a presença de todos ali. Em especial, a do ex-marido número dois, que pegara um voo de última hora de Budapeste, e a da mulher coberta de joias, cuja aparência Dr. Terêncio tomou como evidência do esforço que ela fizera para estar ali.

Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr. leu em voz alta, em um tom de suma importância, escandindo sílabas e pronunciando precisamente todas as consoantes, o conteúdo do documento. A falecida, fotógrafa de profissão, deixara uma lista precisa de todos os seus bens — desde o apartamento de luxo no Pacaembu até o conteúdo das caixinhas que ela guardava nas gavetas da escrivaninha em seu estúdio na Vila Nova Conceição. Suas posses mais importantes, aquelas que ela não havia perdido nos sucessivos divórcios, foram deixadas, como era esperado, para seus quatro filhos, frutos do segundo, terceiro e sexto casamentos. Mas havia oito itens específicos, guardados por muito tempo, e que, na ocasião de sua morte, deveriam ser entregues às oito pessoas sentadas na sala de Dr. Terêncio.

Assim leu Dr. Terêncio dos Santos Almeida, segundo instruções de sua cliente e amiga, o papel datilografado na máquina de escrever eletrônica, com a fala da falecida.

Para Rodolfo Esperanto de Assis, ela deixou todas as fotografias que este arruinara com seu mau humor e o reflexo de sua cabeça calva, que parecia um fogo fátuo no meio de todos os registros daquele breve casamento.

A Ermelindo Josefa, deixou os sessenta e dois álbuns de fotos das crianças que ele nunca ajudou a criar, assim como os dezoito engradados repletos de portfólios escolares semestrais em formato A1, que os professores tanto gostavam de mandar para a casa das mães, com recadinhos passivo-agressivos estimulando imensa culpa caso a possibilidade de jogar aquela tralha fora passasse pela mente materna.

Para Vitor Carvalho, deixou uma cópia das fotos que ela secretamente tirara todas as vezes que ele se encontrou com a esposa de seu sócio. Dentro do envelope pardo que continha aquelas fotos terrivelmente pessoais, havia um segundo envelope pequeno, com uma Polaroid da reação do sócio quando recebeu as originais da mão de Dr. Terêncio ainda naquela manhã.

Para Dr. Ubaldo de Almeida Jr. (nenhuma relação com Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., sendo o primeiro um respeitadíssimo Doutor em Psiquiatria de um hospital particular de primeira linha em São Paulo), ela deixou os direitos patrimoniais da fotografia em tamanho natural que ela concordara em leiloar post-mortem a uma galeria em Nova York. A lindíssima fotografia em preto e branco mostrava Ubaldo em seu momento sensual mais íntimo, vestindo uma fralda geriátrica, e sugando alegremente uma chupeta em forma de ursinho. A imagem mostrava Ubaldo sentado em um cadeirão tamanho adulto, secretamente construído por ele mesmo na edícula da casa deles no Morumbi, onde também mantinha uma geladeira estocada com papinhas da Nestlé.

Para Rodolfo Pereira da Silva (o quinto de uma série de Rodolfos que passaram pela vida romântica da falecida desde seus nove anos, quando se apaixonou inocentemente pelo Rodolfo da terceira série B), deixou uma caixa com todas as cópias e os negativos da fotografia mais premiada e valiosa de sua carreira. Em um ato de amor enquanto foram casados, ela o presenteara, em um aniversário, com os direitos daquela foto, que mostrava os dois em uma banheira cheia de espuma, estampando uma felicidade que durou tanto quanto as bolhas com perfume de lavanda. A caixa, aberta, revelava uma série de papéis fotográficos picados, rasgados e picotados em pedacinhos minúsculos e um negativo queimado com um isqueiro, não até desaparecer, mas apenas o suficiente para arruiná-lo para sempre.

A José Weissman, vulgo Sapo, ela deixou um potinho de vidro com todas as cabeças dele que ela recortara das fotografias dos álbuns de casamento, férias, festas de família e também dos álbuns de infância dele. Desde o divórcio, a cabeça do ex-marido nas fotos havia sido substituída por adesivos juvenis de caralhinhos voadores. Perto do dia de sua morte, ela entendera que o divórcio havia sido culpa dos dois, não apenas de José Weissman, e considerava a devolução das cabecinhas um poético pedido de desculpas.

A Fernando Alfonso Bezerra, deixou a foto do cu que ele nunca comeu.

Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr., então, voltou-se para a mulher, que se encolhia a cada entrega, imaginando que presente horrível a morta vingativa teria deixado para ela, que não era ex-marido de ninguém, mas mulher do ex-marido da falecida.

Dr. Terêncio dos Santos de Almeida Jr. colocou no colo da jovem madame uma caixa de presente com laço de fita, que pesou sobre suas pernas torneadas pelo pilates e as sessões de cross-fit às terças-feiras. É uma cabeça, ela pensou. É certamente uma cabeça. Ou outra parte do corpo. Ou algo horripilante. Uma foto horripilante.

Ela puxou a ponta da fita para desfazer o laço, que despencou, acetinado, pelas laterais de suas panturrilhas. Com cuidado para não descascar o esmalte das unhas, abriu a tampa.

Para Charlene Magalhães de Arruda, deixou uma garrafa do espumante mais caro de sua adega vintage e duas fotografias coloridas, 10x15, em papel brilhante. A primeira mostrava o marido da mulher viva e ex-marido da mulher morta: Rodolfo Magalhães de Arruda, o último Rodolfo da falecida, o que foi seu Rodolfo por mais tempo, até o fatídico dia em que conheceu Charlene no consultório do dentista. Na fotografia, Rodolfo Magalhães de Arruda apertava a mão do homem que mataria a amiga fotógrafa de Dr. Terêncio. Ao lado de Rodolfo, de braços dados como se passeando no parque, Charlene Magalhães de Arruda sorria, vestindo um terninho de linho azul-bebê e olhando fascinada para a aliança de diamantes que Rodolfo lhe dera, exatamente igual à que sua esposa usaria no instante em que morresse. A segunda fotografia, tirada dias antes do assassinato da famosa fotógrafa, mostrava Rodolfo Magalhães de Arruda apertando a mão do mesmo homem, no mesmo estacionamento, de braços dados com a mulher que substituiria Charlene.



Os óculos


Tinha uns óculos de oncinha no meio do caminho. No meio do caminho tinha uns óculos de oncinha. Ali, em uma encruzilhada de trilhas de terra no meio do parque, entre árvores e arbustos fazendo força para se encherem de folhas na primavera fria e chuvisquenta de Toronto: havia uns óculos de oncinha. Armação retangular, grossa, azul-metálica, hastes de onça-pintada, sujos de lama na lente esquerda. Os óculos estavam pendurados em um galho na altura dos olhos, bem no início de um dos caminhos, nesse gesto de gentileza tão comum por aqui, de tornar mais visível para quem procura o objeto perdido.

Gosto de imaginar a história por trás dos objetos pendurados em galhos, em grades, deixados em bancos e pedras, à espera do retorno de seus donos. Como quando, durante um passeio, vi cinco diferentes elásticos de cabelo no chão, ao longo do mesmo quilômetro. Teria o transeunte largado os elásticos um a um, como João e Maria marcando o caminho para o cabeleireiro? Teriam suas tranças se desfeito ao vento, com o movimento em câmera lenta de sua corrida, como em um vídeo de música dos anos 1990? Teriam sido cinco pessoas diferentes, perdendo suas chuquinhas, naquele que só poderia ser o triângulo das Bermudas dos acessórios de cabelo?

Ou quando encontrei uma pequena estátua do deus hindu Ganesha, com cabeça de elefante, sentado em um banco público, olhando para as ondas calmas do lago. Uma oferenda? Uma promessa? Se tivesse caído de uma sacola por acidente, e então sido colocado no banco para que o dono o encontrasse, ainda restaria a dúvida: por que alguém levaria uma estátua de Ganesha para passear no calçadão do lago? 

E os óculos de oncinha.

Tentei criar uma imagem da dona dos óculos. Dona. Era claramente uma mulher. Uma mulher de meia idade. Talvez da minha idade, quarenta e alguns anos, mas não muito bem conservados. Quarenta e alguns anos cansados. Conservado talvez estivesse seu espírito. Conservado dentro das expectativas segundo as quais ela fora criada. Na minha mente, a mulher dos óculos de oncinha havia cumprido todas as suas obrigações, seguira todos os protocolos, marcara um X em todas as caixinhas da lista do que é esperado de uma mulher canadense de quarenta e poucos anos. Alguns anos atrás, ciente do fato de que algo estava morrendo dentro dela, trocou seus óculos conservadores por uns com hastes de oncinha. E, por alguns minutos, ainda saboreando a endorfina advinda de sua compra aventureira, sentiu-se selvagem. Quebrando regras. Rompendo com expectativas. Não via a hora de passear com seus óculos novos. Não via a hora de confrontar os comentários e críticas das amigas e da família. Seria selvagem. Ninguém esperava que ela fosse selvagem.

Mas os comentários não vieram. Tépidas aprovações. A irmã disse, sem muita energia, que os óculos novos combinavam com ela. Com seus olhos azul-melancolia. E a graça da estampa de oncinha esvaziou-se novamente. Não tinha o selvagem nem em possibilidade. Em alguns dias, ela já não notava mais o detalhe animal no espelho. Os óculos de oncinha foram fagocitados por seu espírito morno e desbotavam mais a cada dia, junto com sua alegria.

Naquela manhã, olhando para o fundo da xícara através do café preto e transparente, ela se sentiu esmagada por sua previsibilidade. A casa tinha os cheiros da comida chinesa que pedia toda terça-feira e do aromatizante de flores do campo, cujo filtro ela havia trocado na noite anterior. Ela conhecia de cor os sons dos passos à sua volta, a respiração dos eletrodomésticos. Os passarinhos lá fora cantavam sempre as mesmas três notas.

Ela apoiou a xícara com cuidado sobre a bancada laminada com estampa falsa de granito. A xícara tinha sido comprada em um daqueles impulsos de autoindulgência: quinze dólares por uma xícara verde-água, onde se lia #MomLife, em caligrafia dourada. Tinha achado engraçada aquela hashtag, aquele rótulo que validava sua miséria como parte da vida, fechando a porta para qualquer possibilidade de mudança. Agora achava engraçado como a gente diz que uma coisa é engraçada quando não consegue admitir que essa coisa é, de verdade, triste.

Seus olhos não liam mais aquelas letras. Eles olhavam através da xícara como se estivesse embaixo d’água.

Deixou que seu corpo se movesse sozinho em direção à porta, sem conectar aos músculos nenhum pensamento. Saiu de casa sem levar as chaves, e aceitou a vontade de seus pés. Não se surpreendeu com o parque, aquela trilha entre galhos hirsutos, a lama das chuvas de abril. Os passarinhos faziam, também ali, os mesmos três sons. Não se incomodou com o fato de seus passos coincidirem com o pulso de seu coração. Passou tantos anos andando a um ritmo marcado. Estava tudo bem.

Ali, naquela encruzilhada, ela parou. Pensou nos caminhos que havia percorrido a vida toda e se deu conta de que não sabia mais para onde ir. Como uma sinapse rompida. Os óculos de oncinha pesavam no nariz. Aquela constante lembrança em frente aos olhos de que não adiantava tentar. Removeu os óculos com um movimento ritualístico, dobrando as hastes e pendurando uma delas na gola da camiseta. A camiseta branca de lobos uivando para a lua, comprada na lojinha de souvenires de Algonquin Park, quando foi passar, mais uma vez, como todo ano, a semana de verão no chalé da irmã.

O deus responsável por todos os óculos perdidos do mundo adora óculos pendurados na gola.

Aos seus olhos nus, as trilhas se tornaram meras sugestões de espaço, como pinceladas de uma pintura abstrata. Talvez fosse mais fácil não enxergar o caminho. Ela escolheu um borrão cor de terra aleatoriamente e começou a andar, engolfada na certeza da desimportância da trilha. Não se surpreendeu por não tropeçar nas raízes que não enxergava. Nada mais a surpreendia em uma vida sem surpresas.

Foi um ramo de pastinaca selvagem que acariciou seus óculos de oncinha para fora de seu nicho. O dedo do deus dos óculos perdidos. Ela não sentiu quando eles caíram na lama ao lado do pé direito, sem produzir som. Ela inteira não produzia som. As lentes apontadas para a trilha viram a massa daquele corpo sem impacto caminhando para longe, cada vez menor no meio do parque, dissolvendo no vácuo de seu desinteresse.

Selvagem.

Em casa, o marido, acostumado à sua presença invisível e ignorante de sua visível ausência, derramou o café já frio na pia da cozinha e colocou a xícara verde-água na prateleira de cima da máquina de lavar louças. Abriu a geladeira, fechou a porta com um suspiro resignado, e decidiu sentar na poltrona de couro para ler notícias no celular. Olhou as horas e se perguntou o que ela faria de almoço.



Ah, não!


Perdi o adaptador.

A chave quebrou na fechadura.

Joguei fora o recibo.

Esqueci a senha .

A mala extraviou.

Choveu o feriado todo. 

Esqueci de fechar a janela.

O bolo solou.

Arrancaram a última página. 

A alça da Havaiana estourou

Coloquei sal em vez de açúcar. 

Não tem Wi-Fi.

Não lembro pra quem emprestei. 

O livro caiu na banheira. 

Acabou o papel.

Cliquei “responder a todos”. 

O nude vazou.



O Jantar






















Ana Elisa Granziera é escritora, ilustradora e aquarelista paulistana, nascida em 1979, e residente no Canadá desde 2017. É autora do livro Brutta Figura (Chiado Books - 2020), do blog La Cucinetta desde 2006, e da newsletter Boletos & Borboletas desde 2021. Ilustrou livros infantis e didáticos no Brasil, expôs suas aquarelas em Toronto, e hoje é professora de arte em Ottawa, onde mora com o marido e dois filhos, personagens de suas crônicas e cartuns. Corre maratonas no meio do mato, e escreve poemas quando tem insônia. Recentemente, lançou a obra “Manual das decepções de uma vida comum”, pela Mocho Edições.