Trechos dos contos do livro “Marias de Pedra e Mel”

 por Iara Sydenstricker __






Trecho extraído do conto Maria do Socorro




Nasceu numa cidadezinha semiafogada pelo mar. Pai pescador de camarões. Mãe alcoólatra, documentos de identificação despedaçados, várias vezes perdidos e achados na praia. Filha paciente, obcecada pela ideia de entrar numa universidade e sair diplomada. Ousada para padrões locais.

Aos treze anos conheceu a capital, quando para lá foi enviada como empregada doméstica. Três turnos de trabalho, o da noite dedicado a arranjar letras e números numa escola pública para a qual nem sempre ia graças a atrasos da patroa, do patrão, do patrãozinho. Seu expediente começava com a casa em sono profundo, às cinco da manhã. Café pão leite xícaras cereal jarra frutas guardanapos adoçante copos manteiga garfos mel pratos suco geleia açúcar mascavo toalha colheres iogurte torradeira facas açúcar branco enfileiravam-se na mesma desordem de sonhos inconclusos, interrompidos aos berros pelo despertador. Enquanto a família desjejuava, tirava do fogão ovos quentes fritos mexidos omeletados conforme desejos dos comensais. Todas as manhãs jurava guardar trechos de sonhos inacabados para montar um só, que fizesse sentido.

Nas tardes dominicais, dividia-se entre o cansaço e o desejo de passear. Saboreava larguezas de espaços públicos, onde podia espichar braços e pernas sem medo de quebrar cristais. Gostava do parque, de todas as manifestações sociais, das cores das ruas: uma confirmação de que os mesmos motivos a aproximavam de outros iguais, também divididos entre dormir e respirar a cidade. Assim consumiu-se no tempo, até que patrão abandona patroa, que abandona patrãozinho, que vai morar com avó, há muito abandonada. (...)


TRECHO 3 (extraído do conto Maria de Jesus)


(...) Adorada por parturientes, madrinha primeira dos rebentos vingados, foi santificada por mães agradecidas, canonizada por carpideiras e lavradores e perseguida pelos demais. Assim viveu até enrugar.

E aguardou. Aguardou. Aguardou.

Então, numa semana da Paixão, quando soube ser a mais velha pessoa a existir, babou rezas, bateu as patas na terra quente, mirou o céu e voou com os seus pendurados numa corda feita de sisal e fé.

As testemunhas do milagre não souberam dizer de onde viera e para onde iria aquele trenó esquisito que cruzou o sertão a puxar uma penca de gente seca, descalça e feliz.

 

Foi Maria. Foi Lampião.

Romaria, Cobra-grande, Tupã.

Padre Cícero, José, Sebastião.

Mucamba, mulambo, mulé

Peixe-boi, Tangu-mau, escorpião.

Cigana, boiadeiro, Barnabé.

Curupira. Preto Velho. Assombração.

Mamaluca, caveira, maracujá.

Trovão, calmaria, cobra pajé.

Pecado, perdão, mal e fé.

Moça, homem, orixá.

Foi Maria.

Foi santa.

Foi o cão.

 

Foi Maria Domingas Ressurreição do Cristo, a Jesus.







Iara Sydenstricker (@iarasydescritora) é escritora, roteirista e arquiteta. Publicou contos em antologias e uma coleção de livros infantis sobre crianças e cidades e escreveu vários programas audiovisuais. É professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na Cidade de Santo Amaro. Nasceu em São Paulo, morou por muito tempo no Rio de Janeiro e hoje está em Salvador. Nos lugares por onde andou (re)conheceu muitas das Marias que compõem seus contos do livro “Marias de pedra e mel” (Penalux, 2023) e permanece encontrando inúmeras delas todos os dias, fora e dentro de si mesma.