por Adriane Garcia__
Quem acompanha a literatura escrita por Cinthia Kriemler, contista, romancista, poeta, sabe que em qualquer gênero que a autora escreva há a nítida linha de um projeto. Seu projeto literário gira em torno das questões que envolvem a exclusão social. Suas personagens são marcadas por profundos sofrimentos, trazidas não só de cidades brasileiras, mas de diversos lugares do mundo. A dor universal de ser discriminado, separado, explorado, violentado, tratado injustamente, mais especificamente um projeto atento às mulheres e crianças, eis a matéria de Cinthia Kriemler. Sua escrita é direta, clara, dura, mas que mesmo na prosa, encontra recursos da poesia – o que muitas vezes nos leva à emoção causada não só pela história sempre bem contada, mas pela beleza conseguida na frase.
Viúvas de sal, seu mais recente romance, começa com a aparição fantasmagórica de João Galafuz, em pleno mar. Quando João Galafuz aparece, está de mãos dadas com a morte. É assim, que nas primeiras páginas encontramos um mar que devolve um cadáver infantil, uma menina, ainda bebê. Ali, em um círculo de mulheres que abrigam esse corpo afogado, ficamos conhecendo as trabalhadoras da Cooperativa de Pescadoras de Porto do Xaréu, em Pernambuco, fundada em 2011. Ali, descobrimos na nudez da expressão da narradora, que em determinadas condições de existência a morte de uma mulher pode ser um alívio.
A narração é feita em primeira pessoa por Augusta dos Santos, uma mulher de 42 anos que nos insinua um passado incômodo e que possui uma segunda identidade. Acolhida pela líder Tonha, chefe da Cooperativa, Augusta será a forasteira acolhida que nunca se sentirá verdadeiramente dentro, por vir de um outro mundo. É essa narradora, participante e, ao mesmo tempo onisciente, que vai dar conta de um olhar panorâmico e ao mesmo tempo microcósmico para a vida dessas mulheres. De um tempo futuro, ou talvez de um “não-tempo”, no após dos fatos, a narradora usará o tempo verbal do presente para nos contar uma história. Como uma narradora em primeira pessoa pode ser onisciente e saber de coisas, pensamentos e sentimentos que não presenciou? É uma pergunta que quem está lendo se faz, e que fica explicada ao final do livro.
Também salva das águas pelas mãos de Tonha, Augusta nos levará ao cotidiano e ao passado das principais figuras da Cooperativa, uma organização de mulheres criada para dar resposta à miséria implacável, à viuvez sem amparo, ao mundo hostil que as mulheres têm que enfrentar para defender a própria vida. Ali, um retrato da solidariedade das pobres, das miseráveis que só têm a si mesmas e umas às outras.
Para unir as personagens, Cinthia Kriemler utiliza o trauma – todas as mulheres da Cooperativa vivenciam um estado pós-traumático. E é muito interessante e eficaz a estrutura que a autora usa para entrelaçar essas histórias. Enquanto caminhamos pela narrativa – sem dúvida de potência cinematográfica – a autora nos leva às várias denúncias que Viúvas de sal apresenta: crimes ambientais prejudicando a pesca, pandemia e abandono governamental, dificuldades extremas na economia regional, religião e poder, religião e política , religião e cooptação dos vulneráveis, religião e hipocrisia, religião e assédio sexual, pedofilia e estupro, religião e homofobia, aborto por falta de condições materiais, insegurança abortiva, prostituição e violência contra as prostitutas, e o núcleo das denúncias deste livro, misoginia.
Penetrando nas casas, no trabalho, na vida de Tonha, Cida, Sebastiana, Josefa, Binta, Augusta, Mariamma, Eustáquia, dona Doquinha, Cinthia Kriemler nos ciceroneia ao inferno das famílias disfuncionais, dos pais violentos, das mães submetidas, das crianças expostas e maltratadas: “Dos quatro filhos que pariu bem jovem, dois não vingaram. os mais velhos, Inácio e Antônio, sobreviveram ao pai. E ao ódio que sentiam dele. quando o homem morreu, numa briga de bar, Inácio tinha 12 anos e Antônio 10. Apesar de tão novos, ambos entenderam o significado feliz daquela morte”.
Viúvas de sal não se furta de contar a vida como ela é, a vida de tantas pessoas, tantas mulheres perseguidas, doentes, vivendo na precariedade até a loucura. E ainda assim, tratando de temas pesados e duros, o livro possui uma profunda beleza, a atmosfera do seu mar, a luta cheia de gana de viver. Um romance que emociona diversas vezes, que arranca lágrimas e que nos faz sentir certo gozo de vingança. Um livro regido pelas águas, na sua representação legítima do feminino, de vida e morte, de placenta, movimento, eternidade. Um livro sobre mulheres inesquecíveis, feridas, mas que ainda assim exercem o amor em suas existências.
“Abominação! O dia mal clareia e as letras vermelhas atraem os olhares dos curiosos para o muro de uma casa de esquina. Um rapaz que volta do cais entra na casa gritando. Mãe! Mãe! Mas Ciça está no mar desde a madrugada. É Eustáquia quem vai ao encontro de Inácio, o filho mais velho de Ciça. Tu viu a merda que tá escrita aí no muro?, ele pergunta. Ela fecha os olhos e suspira. Não viu. Nem precisa. Não é a primeira vez. A corja de fanáticos do pastor Ezequiel não dá trégua. Ciça e ela estão cansadas de denunciar, de enfrentar. A janela de casa arrombada. O casco do barco perfurado. Bonecas queimando numa fogueira no quintal. Roupas estraçalhadas no varal. Gritos de Em nome do Senhor Jesus! durante a noite. Elas estão exaustas. São impedidas de comprar na quitanda, no supermercado. São ofendidas no mercado de peixes. Nos cultos de domingo, o linchamento público. Messalinas. Aberrações. Demônios. Os gritos histéricos da audiência ecoando na Casa do Senhor. Casa do Senhor o caralho.”
(p. 34)
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Viúvas de sal
Cinthia Kriemler
Romance
Ed. Patuá
2022