Voltar pra cidade, crônica de Yvonne Miller

 por Yvonne Miller__





Tomar um café contundente na casa do vizinho e despedir-se dele com os olhos marejados. Percorrer pela última vez a casa vazia. Forçar malas, mochilas, sacolas, violão, travesseiros e demais embrulhos para caber no Fiatzinho. Tranquilizar o Salém: vai dar tudo certo – miau! Levar o Chico a um último passeio pelo condomínio. Passear ao lado das bicas e piscinas naturais. Pensar que deveria ter aproveitado mais. Saber que aproveitei bastante. Tirar algumas fotos da paisagem verde, como se já não tivesse mil fotos iguais. Acenar pra Larissa quando ela passar  com o carro. Falar pro Chico que vamos encontrá-la mais à frente. Dar um abraço de despedida aos funcionários que encontro ao longo do caminho. Agradecer e desejar tudo de bom. Dizer que vamos voltar pra visitar, sim. Chegar suada na portaria – de repente já são 11 horas –, acomodar o Chico no banco traseiro, a caixa do Salém aos meus pés, o cacto de estimação entre os joelhos e pegar a estrada.

Rodar quatro horas. Reclamar do trânsito em Abreu e Lima. Lembrar da Feijão em Goiana. Resistir ao desejo de vê-la só mais uma vez. Mandar uma mensagem à tutora nova e perguntar por ela –  se está bem. Ficar dois dias em Pipa para curtir o processo. Gostar mais da cidadezinha do que nas visitas anteriores porque todo mundo é muito simpático com Chico. Tomar banho na Praia do Amor. Comer empanadas argentinas, tacos mexicanos e um prato sírio. Ouvir espanhol, alemão e inglês nas ruas. Surpreender-me com Chico porque se comporta bem com os carros e motos. Brigar com Chico porque voltou a latir pros carros e motos. Desviar dos cães-sem-dono. Entrar no quarto com cautela e ver que o Salém continua embaixo da cama.

Pegar a BR de novo. Ir com o sol. Ficar tensa com o povo doido no trecho Natal – Mossoró. Falar pra Larissa que posso dirigir também. Ficar aliviada ao ouvir que não precisa. Olhar pela janela e perceber a mudança na vegetação. Dar um suspiro ao entrarmos na pista duplicada com o anoitecer. Entrar em Fortaleza e dizer que estávamos com saudade. Já estar com saudade de Aldeia. Parar nas Tapioqueiras. Jantar. Lembrar que na ida para Aldeia também comemos aqui. Não acreditar  já faz três anos. Continuar o último trechinho sob chuva. 

Chegar em casa depois de nove horas na estrada. Não ter a chave do apartamento na portaria. Esperar a síndica chegar com a chave e mil desculpas. Subir as escadas até o quarto andar. Reencontrar o apartamento do nosso passado. Olhar pela janela para um mar de telhas. Armar as redes. Não conseguir dormir na rede. Cochilar e acordar com o barulho de motores, vozes, a TV da vizinha, o sertanejo da rua. Não ouvir mais o canto das cigarras nem a brisa nas folhas. Pensar que mesmo assim eu gosto de mudança. Ter certeza de que coisas boas me esperam aqui.


Fortaleza, 6 de abril de 2023





Yvonne Miller
 (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais. Também colunista da revista Mirada, com crônicas e contos publicados em várias antologias, e uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos “Quando a maré encher” (Mirada, 2021). 
“Deus Criou Primeiro um Tatu – Crônicas da Mata” (Aboio, 2023) é o melhor que ela já escreveu.