Dois trechos de contos do livro A Nudez Extinta, de Isabela Sancho

por Isabela Sancho__







Quando a ascensorista lhe perguntou pelo andar, Gisele ficou sem resposta. Sentada junto ao painel, aquela mulher uniformizada lhe pareceu sorrir automaticamente, como se fizesse parte do maquinário. Diante das placas de vidro transparente que encerravam o elevador panorâmico, por um instante as vislumbrou ausentes, em uma completa ausência de anteparo. Apenas a plataforma se deslocando sozinha, como uma espécie de bandeja, sendo preciso que quem subisse se firmasse, do jeito que desse, nas próprias plantas dos pés.

“Não vai entrar?”, a ascensorista insistiu com os olhos travados, mas a porta começou a se fechar contra Gisele, seu ombro e seu quadril pressionados com a tranquilidade de um esmagamento lento e constante.

Ela escapou com um passo afoito para trás.

Sentindo um formigamento começar por dentro das axilas e na sola dos pés, viu a ascensorista subir sozinha, em seguida, sem andar de destino próprio.

Ficou algum tempo imaginando como seria um elevador sem painéis laterais: funcionaria como um bonde. Seria 

preciso saber saltar para dentro e para fora quando chegasse a hora, sem que a cabine parasse a cada pavimento. Pois a pausa poderia ser de uma brecada excessiva, lançando os passageiros pelos lados, para baixo.

Já vira um fosso vazio uma vez, quando devia ter uns dezesseis anos. Os elevadores do edifício da sua mãe recebiam consertos periodicamente, e, pela vidraça na porta metálica, dava para enxergar o vão iluminado com as correias que, em funcionamento regular, costumavam vagar em um escuro quase absoluto.

Àquela época, houve uma vez em que, enquanto o elevador de serviço estava em manutenção de rotina, o outro quebrou. O porteiro contou que uma moradora tinha ficado presa lá dentro por horas até os bombeiros chegarem. A porta foi lacrada com um aviso, e, quando Gisele chegou da escola para o almoço, precisou mudar de rota, recorrendo à escada de emergência.

Ao abrir a porta corta-fogo, vacilou ao pôr o pé para dentro, com a impressão de que não havia subida, apenas alguns degraus para baixo. O último deles se deformava em uma rampa muito íngreme, que logo parecia se derreter e se solidificar, magmática, sinuosa. Tornava-se uma espécie de escorregador, a seção aos poucos se fechando por cima em um tobogã cilíndrico, que desembocava no breu: um vão livre sem dimensão, sem guarda-corpos, sem eco.


[Do conto Todos os botões]

A galhada de cervo é verdadeira, apesar de ter perdido o lustro. A cera já se foi há alguns anos, é por isso que parece ser de madeira. Certa vez, julguei ter visto uma folha brotar à ponta, em um lapso de árvore invernal. Na miragem de olhar sempre para o mesmo lugar, até cruzar os olhos e reverter a realidade.

Os pelos se amassam no arremate entre o pescoço e a moldura, essa sim de madeira, mais bem conservada que o próprio animal. O entalhe de volutas o adula, floreia o seu abatimento.

Na parede ao lado, presas amarelecidas. Uma ira de outra era. O castanho do pelame, camuflagem de bosque e sombras, desbota. Sem respiração que lhe atravesse os furos, o focinho de urso resseca e trinca.

Vez ou outra, vejo-me pensando em como viemos parar aqui.

Não sei que aspecto tenho agora, centralizado sobre a lareira. Quando os lobos envelhecem vivos, branqueiam. Creio que, em mim, o prateado tenha arrefecido em cinza, o brilho evacuado pelas pontas, como os bafos que se engolem sozinhos nos nossos olhos de vidro.

Há apenas uma parede vazia para completar nossa coleção. Mesmo que consista em um cervo, um urso e um lobo, há uma atmosfera feminina na sala. É o nosso silêncio de mata dormente, de relva macerada há dias. É a placidez daquilo que correu deitado, golpeou o céu ou abocanhou o ar e, então, cessou. São nossas cabeças caladas e separadas, entre si e dos próprios corpos, quase agradecidas pelos sangues terem enfim terminado seus trabalhos, vazando fora nossas vidas.

Fomos bem limpas e curtidas. Trabalhadas por fora e pelo avesso, cada qual na sua década. Fomos preenchidas de palha, em substituição aos nossos músculos e instintos.

É convidativo nosso sepulcro entre cortinas, fim de tarde e meia-luz. Berto é o caçador aposentado que se masturba no sofá enquanto encara suas três velhas vitórias nos olhos. Não se vê refletido, diminuído, convexo. Suas pernas curtas virando para cima, solapado para dentro do meu crânio.

Borbulham ruídos de outro cômodo, algo que se aquece sem pressa na água fervida. As narinas de Berto vão se abrindo, os dentes espaçam entre si. Vai ficando prognata tão logo pega o ritmo, aos trancos, em direção a si mesmo.

Pergunto-me se terá chegado a deslocar o maxilar, quando mirou meu peito com seu furor de injustiçado e o rifle menor.


[Do conto Uma de nós]





Isabela Sancho
(@isabela.sancho) é escritora, ilustradora e psicanalista. Autora das plaquetes Quem fala em seu nome, Encavalave e Urna de pólen (com co-autoria de Flora Nakazone), do livro infantil A invenção das Isabélulas, dos livros de poemas As flores se recusam, A depressão tem sete andares e um elevador, Monstera, Olho d'água, espelho d'alma, e do livro de contos A nudez extinta.