por Luiz Henrique Gurgel__
acervo da família |
Ela não lembra o que veio fazer com a mãe na cidade. Pagar uma conta no banco, comprar roupa, sapato, buscar documento ou só bater perna mesmo. Naquela época eram cinco filhas, a sexta, temporã, ainda demoraria. Vida apertada, o marido operário dava duro na fábrica e a mulher completava a renda familiar com um pequeno salão de beleza que instalou nos fundos da casa para atender a vizinhança.
Mas a ida à cidade com a mãe foi motivo de alegria, daquelas em que situações comuns e corriqueiras ficam guardadas para sempre. Era raro ter a mãe só para ela. Zanzaram pelas ruas, cobiçaram vitrines onde gente endinheirada costumava abastecer o guarda-roupa, o porta-sapatos. Pulavam de uma loja para outra, rindo, felizes sem nenhuma razão.
Passaram por uma famosa lanchonete que vendia sorvete tipo “americano”, um luxo. Vamos tomar um?, a mãe sugeriu para espanto da filha que sabia que aquele tipo de sorvete custava um dinheirão. Foram tomar. A mãe era dada a manifestações repentinas e inusitadas de carinho.
O tempo ia passando, já era hora de pegar o ônibus e voltar para casa no bairro, tinha a janta do marido e das filhas menores para preparar. No caminho até o ponto passam por um lambe-lambe, aqueles fotógrafos de rua com um caixote sobre tripé e que fazia retratos na hora. A mãe puxou a filha, vamos fazer um retrato. Mas mãe, vamos atrasar o jantar! Nada, é só um minuto. A mãe se ajeitou no único banco, a filha se abaixou um pouco para ficar junto dela, o surrado pano de fundo trazia uma paisagem marítima.
Pronto, em minutos o fotógrafo entregou o envelope com a foto. Subiram no ônibus, sentaram, puxaram aquele instantâneo do envelope e foram contemplando aos risos até chegar no bairro. Foi um pequeno momento, uma partícula ínfima de tempo que acabou se tornando fragmento de alegria plena, sempre presente neste eterno aqui e agora do estar vivo.
Por
milagres que a gente desconhece ou porque o fotógrafo era honesto, a foto
lambe-lambe, normalmente efêmera, durou décadas suficientes para ser restaurada
e ampliada. Permanece aqui, vivíssima e pulsante (também em mim) como numa
tarde de primavera em que mãe e filha resolveram apenas sair por aí.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020).