por Júlio César Bernardes__
Trecho de Josué e a Baleia
Apesar de toda a fé com que, noite após noite, ao longo de oito anos, ele rogou por um teto sob o qual dormir, e da certeza inabalável de que suas preces seriam atendidas em algum momento, jamais ocorreu a Josué que o presente divino, quando entregue, pudesse ser tão peculiar e precioso como o que encontrou naquela manhã, quando os primeiros raios de sol, já cintilando nas garrafas quebradas e nas latas amassadas espalhadas pela praia, deixaram de iluminar seu rosto curtido por terem esbarrado nas monumentais costelas de uma baleia azul.
A ossatura colossal, com vinte e sete metros de comprimento por quatro de altura, ria da insignificância das coisas terrestres, de coqueiros, palmeiras e postes, e de uma ponta a outra da baía se via sua brancura estonteante, cultivada por um século nas profundezas da Antártica. Não era à toa, pois, que um grupo considerável de turistas já se encontrasse no local, estupefato com o inusitado espetáculo, quando Josué acordou. O que não se explica tão facilmente é que nenhum dos curiosos tenha se aventurado pelo que um dia foram as entranhas do glorioso mamífero, como se reconhecessem, desde então, a natureza privada do terreno demarcado pela carcaça.
No centro da coluna vertebral, de braços e pernas bem abertos, Josué, que a todos parecia vítima das mandíbulas de um demônio marinho, abriu os olhos e caiu no choro. Anunciou-se abençoado. Ali estava, enfim, o pedido que tanto aguardara, esculpido pelo tempo, polido pela espuma do oceano e carregado pelas ondas especificamente até ele, e correu beijar e abraçar cada uma das costelas, sorrindo e saltando, tropeçando na areia fofa, explicando, para a alegria dos turistas, que aquele era seu lar. É sua casa? Perguntavam, pois sim! E há quanto tempo? Desde que o mar me deu. E como você a conseguiu? Rezando, rezando muito, e a mão de Deus tirou da água, assim, olha, desse jeito, e colocou aqui, peça por peça, enquanto eu dormia, porque foi surpresa, entende?
Meia hora depois, mais de vinte milhões de pessoas já tinham assistido, em quarenta e seis países, aos vídeos do homem que habitava o esqueleto de uma baleia azul num recanto do litoral brasileiro. E o lugar, conhecido pela tranquilidade, aparecia, a cada foto de Josué publicada nas redes sociais, mais e mais abarrotado de gente.
Trecho de Chamado ao Luto Perpétuo
Eu não visitava a cidade há quase três anos, apesar de serem poucas horas de viagem de carro. Estava sempre ocupado, estudando muito, e menos do que deveria, mas não nego que faltava também vontade. Por isso as mudanças que encontrei ao chegar, embora hoje eu saiba já estarem lá há muito tempo, nascendo silenciosamente junto com as raízes que rompiam o asfalto escasso, me assombraram.
Bares sem luz abrigavam velhos que lutavam contra o sono em cadeiras de alumínio, alguns dormiam na calçada, sentados de costas na parede, com ou sem um chapéu sobre o rosto, a camisa despreocupadamente aberta, nenhum era Sebastião. Aos bandos, pássaros comiam em jardins e garagens cobertos pelo barro trazido pelas chuvas, quando não entravam e saíam como bem entendiam das casas deixadas para trás. Muros tombados e telhados esburacados anteciparam meu reencontro com uma praça deserta, de bancos decrépitos, impossível de se imaginar acolhendo uma barraca que fosse, quanto mais uma feira, no centro o coreto convertido no tipo de ruína que não interessa aos arqueólogos. Do outro lado, do alto da torre da igreja, onde antes havia um orgulhoso e resplandecente sino, ou ao menos era a memória que eu tinha dele, o céu parecia observar a devastação com um espantado olho retangular. Em qualquer direção, desprovidas de quem as colhesse ou enfeitasse, dezenas de pinhas cobriam o chão.
Entrei na antiga casa preparado para chorar, eu pensara no choro a viagem inteira, mas não chorei. Não me faltava tristeza, eu me sentia duas vezes abandonado, uma pela minha vó, outra pela cidade, mas um sentimento morno e plástico me envolvia e me afastava dali, como se me protegesse das lágrimas e das memórias, e foi quase inconsciente que abracei familiares e conhecidos, que retribui os olhares complacentes, os lábios comprimidos pela impotência e os tapas inúteis nas costas. Não sei quanto tempo passei assim, alheio. Sei apenas que recobrei os sentidos quando vi, além do tumulto que envolvia o caixão, num canto escuro entre vários buquês, segurando uma sacolinha de pano gasto, a silhueta sombria de Maria Teresa, idêntica à personagem da história que eu contava na faculdade, os trajes negros engolindo a luz do cômodo.
Trecho de As Pestes de Aciratuba do Oeste
Um dia depois dos insetos chegarem, prevendo, não por dom, mas por lógica, que o fenômeno escalaria para um novo patamar, Ana, em vez de se embrenhar pelo canavial, decidiu sentar de frente para a plantação, ensopada de repelente e escondida embaixo de um chapéu largo do qual pendia um mosqueteiro improvisado. Depois de algumas horas, vieram, aos montes, as serpentes que habitavam a lavoura, pequenas, enormes, roliças, finas, algumas com duas cabeças, deslizando umas sobre as outras na direção da cidade, as escamas refletindo o brilho agressivo do inferno que ardia no horizonte, lembrando a correnteza de um rio turbulento sob a luz de um pôr do sol sem fim. A jovem não ousou levantar a arma contra os animais. Por mais que fosse sua intenção emboscá-los, não imaginara encontrar aquela quantidade de répteis, e se impressionou, além disso, ao constatar que estavam visivelmente mais assustados do que ela poderia estar, ignorando-a por completo durante o êxodo. Por um quarto de hora as cobras avançaram, mas Ana precisou de mais do que isso para se recuperar daquela imagem e atinar para o fato de que agora o serviço de um ano inteiro a aguardava. Mal sabia que, dentro de alguns dias, até as crianças estariam matando cobras na cidade, algumas para ter o que comer.
A invasão das serpentes antecipou que em algum momento também chegariam lobos, capivaras, tatus, tamanduás e outros mamíferos sobreviventes. Detrás das janelas cerradas, as famílias observavam, por entre o enxame de insetos, os animais formarem bandos que assaltavam lixos e invadiam mercados e padarias. Na ausência de descobertas, comiam uns aos outros. As pessoas que precisavam se aventurar pelas ruas para disputar os produtos restantes nas prateleiras de supermercados ou para pedir açúcar, fermento e outras provisões nas casas vizinhas precisavam vestir três jogos de roupa, improvisar máscaras de papel, agitar vassouras na direção dos animais e ameaçá-los com gritos incompreensíveis. Alguns moradores haviam desrespeitado os avisos e fugido de carro. A completa falta de notícia sobre eles foi considerada sinal de fracasso. E mesmo que tivessem obtido êxito, de todo modo, repeti-los logo se tornou impraticável, já que os caminhões de combustível não tinham como abastecer Aciratuba sem explodir na estrada. Foi anunciado, certa manhã, que uma balsa traria mantimentos para o município. A embarcação chegou fumegando e sem sobreviventes. No mesmo dia, seguindo a trilha de destroços do barco, um cortejo de peixes mortos e meio cozidos desceu o rio, cobrindo completamente a superfície. Pelo menos o cheiro atraiu para as margens os insetos, aliviando um pouco o zunido que ecoava nas regiões mais afastadas da água. Tudo isso Cassandra ficou sabendo por meio de Ana, sem que algum relato tenha atenuado sua mágoa ou seu apego à reclusão.