por Ricardo Pecego__
Foto: Omar Roque |
Trecho 1
As conversas com Valter, fora da cela, eram um alívio. Momentos em que eu conseguia respirar, fora daquele depósito de resto de gente. Enquanto organizávamos as estratégias de defesa, eu confessava ao Valter o terror que estava vivendo. Eu imaginava a todo instante que seria o próximo a tomar um soco na cara, ou ser perfurado por um cabo de escova de dente afiado. “Isso precisa acabar antes que eu perca minha sanidade”, eu pedia para ele sempre nas visitas. “Você está enfrentando melhor que seus irmãos toda essa situação Jonas”, “Valter preciso de ar! Sentir outro cheiro que não o da bosta dos outros. Eu estou definhando”, “Calma! Sei que é complicado, aguente um pouco mais, por favor. Mantenha as aparências dentro da cela, seja firme. Aqui comigo você pode desabafar”. Ele tinha razão, mas não era uma coisa simples. Antes fosse somente fazer cara de malvado e ficar ali de peito estufado. Precisava segurar os enjoos, não podia assustar com as brigas dos outros, que começavam do nada e a todo momento. Tinha de ter o estômago forte para assistir a violência acontecendo na sua frente, vendo uma pessoa sangrar até a chegada do carcereiro, sem poder ajudá-la.
Quem estava na condição de ferido tentava atravessar a carapaça que todos ali usavam para se proteger. O foco deles eram os olhos, onde talvez se encontrasse um resquício de humanidade no outro. Em duas semanas preso assisti três mortes agonizantes, pessoas que aguardaram por horas o auxílio, mas infelizmente seus ferimentos tiveram o efeito desejado pelo agressor.
A rotina enfadonha, mutiladora de pensamentos pesava sobre os ombros de todos. Diferente da vida cotidiana, ali ninguém sonhava projetando um futuro. Preso, ninguém consegue pensar adiante. Se dizem que a esperança é a última que morre, posso afirmar: quando se está no cárcere, aquele cheiro da prisão só pode ser das dezenas de milhares de esperanças se decompondo vagarosamente na frente de todos.
Trecho 2
Minha rotina tomou nova forma. Posso dizer que foi revigorante, tanto no aspecto psicológico com físico. Havia terminado aquele ciclo de estar sempre alerta ao mal que espreitava, esperando nossa desatenção. Eu me levantava cedo, andava no pequeno pomar, gostava de ver o movimento das plantas, nunca estavam iguais ao dia anterior. Assim que me chamavam, seguia para tomar o café da manhã. Os rapazes iam cedo para escola, em Alta Floresta. Uma van os levava cedinho e os trazia de volta perto do almoço.
O Cícero se levantava da mesa, depois de tomar um último golinho de café e me chamava para segui-lo, “Vamo plantá peixe!”, se despedia da Luzia e ligava o caminhão.
Nosso destino era o sítio da família, que ficava há uns vinte quilômetros de casa. A propriedade era toda cercada de árvores, que quase tocavam o céu. O rio Nhandú serpenteava pelo lugar, a floresta o escondia, terminava perto da sua beira, as árvores sombreavam tudo, abrindo clarões apenas onde estavam os lagos do criatório. Para mim tudo era imenso. Os cheiros, a paisagem, os sons e os animais como macacos, araras, tucanos, jaguatiricas, antas, jacarés, onças habitavam aquele lugar, eram presenças vivas. Para mim tudo superlativo, grandioso. Os funcionários do Cícero achavam pequeno, “Rio grande mesmo só mais pra cima”, falava o Néu que já havia morado no Amazonas.
Tudo funcionava através de um sistema muito simples de pequenos canais, controlados por uma comporta de concreto, que permitiu o fluxo de água do rio necessário para encher seus dez lagos onde criava apenas espécies de peixes nativos: Pacu, Trairão, Bicuda, Curimbatá e o famoso Tucunaré. Dos peixes produzidos, uma parte pequena seguia para restaurantes, os principais clientes eram pesqueiros e propriedades privadas que precisavam povoar seus imensos açudes.
Trecho 3
“Marcela! Vamos menina! Se aprume!”, eu escutava seu chamado, mas não queria acordar não. Se não reagisse sabia que ela vinha me tocar. Era tão bom sentir sua mão encostando na minha cabeça. As unhas compridas fazendo uma coceirinha delicada e carinhosa. Davam uma sensação de arrepio quando encostavam no meu couro cabeludo, ainda mais perto da nuca. Ela coçava com leveza e cantarolava com voz aguda, “O sol já surgiu, o dia raiou...”, não lembro mais da letra inteira. Tentava resistir um pouco mais afundando a cabeça no travesseiro, “Hoje é sábado!”, “E você já sabe que dia de sábado seu pai quer a família inteira na mesa pro café. Bora, se aprumar Marcela!”.
Era o tempo de escovar meus dentes e usar o banheiro e o quarto já estava transformado. Minha cama já estava arrumada, com a troca de roupa separada sobre ela. Até os sapatos que combinavam já estavam me esperando. A Ceição me ajudava a me trocar. Tinha uma pressa nessa hora, porque eu demorava a levantar. A ajuda dela compensava meu atraso. Depois de pronta, saía voada pelos corredores da casa. Gostava de dar bom dia para os meus parentes mortos. Atravessava o corredor dando “Bom dia”, para os quadros que retratavam com exatidão meu Trisavô Bento, o Tataravô Augusto, biso Martim e o vô Juca. Eles ficavam do lado direito do corredor, separados pelas portas de seus próprios quartos. Do lado esquerdo estavam as mulheres: trisavó Adelina, tataravó Ana Luzia, bisa Constança e vó Deolinda. Entre elas, as janelas com vista para o jardim. Depois de passar pela bisa já dava para ver a ponta do gazebo onde acontecia a movimentação do café da manhã do sábado.
Acelerava o passo embalando para fazer a grande curva das escadarias, onde o as alas do andar de cima se juntavam. Direto eu descia de bunda, me deixando escorregar, dependia da roupa que a Ceição separasse. Quando a pressa era muita eu pulava degraus. Chegava na sala e a atravessava por entre os jogos de sofás para chegar ao jardim.
Seguia ligeira por uma das muitas trilhas de pedras que se misturavam em direção ao centro onde estava o gazebo com suas colunas de madeira brilhosas, redondas. O piso de pedra era irregular, chegava doer meus pés dependendo da minha correria. No centro de tudo, uma baita mesa de pedra roseada. Nunca gostei daquela mesa, achava muito gelada.
Eu gostava dos talheres. Eram pesados e brilhosos ficavam apoiados numa haste de metal que eu sempre brincava enquanto ficava ali sentada, fazendo gosto de meu pai. Tudo era cheio de rapapé. Os pratos brancos enfeitados com o nosso sobrenome escrito em vermelho vivo, eram pares com as xícaras, com os mesmos enfeites.
O Robério me ajudava a chegar com a cadeira próxima da mesa, conforme contavam, ele havia nascido na fazenda, sua família trabalhava ali desde a época do meu tataravô Augusto. Sempre dono de um bom dia sorridente, me fazia um sinal de joia com a mão. Eu gostava de puxar a luva branca que ele usava. Quando criança pequena eu dizia que ele deveria se casar com a Ceição, seria perfeito as duas pessoas que eu mais gostava estarem juntas. Não fazia ideia de que eram pai e filha naquele tempo.
Na mesa do sábado estava sempre a família toda, meus quatro irmãos, todos mais velhos: Manoel, Gusto, Ângela e Antônio. Meus avós. Minha mãe, Adelaide, que ficava próxima da cabeceira, onde reinava meu pai, Manuel Antônio Arruda de Moraes e seu bigodão preto da cor dos seus cabelos ensebados pra trás. Só via a figura de meu pai quando virava as páginas dos jornais que lia durante o café. Ele conversava uma coisa ou outra com a minha mãe, mas estava sempre tagarelando com Agenor e com meu avô, que também lia os jornais e o acompanhava para todo canto.
Robério me servia sempre uma fatia de mangulão quentinho e dizia para me apressar que o beiju com azeite de coco logo estaria pronto. Depois tomava um suco de caju, meu predileto. A coisa mais chata nesse café da manhã do sábado, sempre foi esperar meu pai terminar sua leitura.