por Anansi Owère__
Amazonas
guardava consigo o segredo da vida. Era no seu peito que ele latejava. Eram as
noites insones e as horas sem fome que o diziam. O corpo mole, a voz fraca, a
desilusão… isso o anunciava. Amazonas era mulher e, por isso, sua sina era uma
vida de dor, sim, mas de muitas alegrias também. Dentre as tristezas, a vida,
que em seu pulsar a assustava, remexia de forma incômoda; dentre as alegrias, o
amor. Amor nos salva, ela sabia. Amor que é elo, que aconchega e cuida; que é
acalanto em dias de dor. Esse amor era expresso nas suas, aquelas
meninas-mulheres que com risos frouxos e línguas afiadas a conduziam numa valsa
de amor. E talvez só por isso, só por elas, Amazonas não desistia de ser ela
mesma essa vida possível.
Caminhando a
esmo, doía-lhe tudo, principalmente o mundo. O mundo doía-lhe porque ela era
humana. E ser uma humana-mulher era, às vezes, incômodo. Indo à parada do
ônibus, pensava no que lhe acontecera na infância. Lembrava-se que assustada
ela seguia sob a ordenança de seus superiores. Eles diziam que ela ia se
divertir, bastava fazer o que eles queriam. Encurralada seguia sem saber o
rumo. O destino que a aguardava independia de seu querer: a dor, a tristeza, a
solidão do mundo a cobriria. E esse manto não a satisfaria em nada.
Parou com o
ruído estridente da buzina. Por pouco se esquivou da moto, mas não se livrou da
queda. Sua perna doía, tinha cortado. O sangue escorria lento, mas feroz. Era
uma dor que, embora materializada no corte, Amazonas conhecia a sensação.
Sentira outras vezes. Era uma dor semelhante àquela que, quando vinham-lhe as
lembranças, corriam como lobos ferozes em seu peito, estilhaçando, muitas
vezes, qualquer ânimo ou felicidade passível de existir.
No hospital, o
médico perguntou por um parente que podia acompanhá-la. Não tinha sido grave,
mas era melhor não estar sozinha. Amazonas disse que chamasse Teresa, sua
amiga-irmã. Teresa foi e levou Maria e Mazé. As três, preocupadas, pressentiram
que mais uma vez Amazonas esteve perdida em suas dores. As amigas já conheciam
os tormentos que assolavam a moça-mulher. Entendiam seu sofrimento. E,
principalmente, compadeciam-se dela. Como mulheres, reconheciam o sofrimento;
sabiam de sua dor e sentiam, apesar de não terem conhecido essa
triste-experiência, seu desânimo. Mais que isso, em seu furor, as amigas
produziam todo o amor necessário para cuidar de Amazonas. Elas eram seu
coletivo, o lugar onde Amazonas encontrava amor. Elas tinham inventado um mundo
onde a felicidade fosse possível, onde o amor fosse uma prática de
(auto)cuidado, respeito e fortalecimento.
“Essa memória me
estilhaça de uma forma que eu não me reconheço mais…”, dizia para as amigas.
Elas franziam o cenho e consolavam com carinhos nos braços e mãos de Amazonas.
“Eu fico indignada que isso tenha acontecido com você, Maz”, disse Teresa. “Eu
poderia acabar com esse mundo e fazer um novo só pra te ver bem e feliz”, disse
Mazé. “Talvez a gente já tenha feito isso”, falou Maria. Amazonas olhou para a
amiga com ar de indagação. Mazé e Teresa pareciam não dar tanta importância pra
fala de Maria. “Nos cercamos de um amor tão verdadeiro… Nos cercamos e nos
protegemos. E ele vem de nós. Ele é feito por nós”, disse Maria. “Desde que nos
aproximamos, sinto que até nos dias ruins a vida é possível”, completou Mazé.
“Talvez seja verdade, Maria. A gente fez, com nossas mãos, uma vida possível”,
acrescentou Teresa. “Uma vida feliz possível”, disse Amazonas.
O médico bateu na porta pedindo licença. “Você
pode ir pra casa, Amazonas. Peço que tenha mais atenção quando for cruzar uma
avenida”. Amazonas levantou e, ainda com a perna doendo, deu passos lentos em
direção à saída. Teresa, que trouxe Maria e Mazé, levou Amazonas até em casa.
Chegando em casa, Amazonas sentou na cama, enquanto as outras se remexiam na
casa inteira. Mazé foi preparar uma merenda, Teresa olhava o guarda-roupas da
amiga e Maria ficou deitada ao lado de Amazonas. “Sabe, você tem razão, Maria”.
Amazonas começou a falar e todas ficaram atentas, embora estivessem em suas
ocupações. “Eu sinto muito e quase diariamente os desdobramentos de uma dor que
me acompanha desde a infância. Foi difícil falar sobre ela, mas vocês foram
algumas das poucas pessoas que, além de sentir muito, se indignaram comigo. E,
às vezes, só o que me falta é essa indignação coletiva. Agradeço por isso. E
agradeço também pela força criadora dessa indignação. Agradeço pelo amor que
faz essa realidade onde minha vida feliz é possível”. As amigas sorriam em
confirmação com o que Amazonas dizia, pois para elas também fazia sentido, era
verdadeiro e potente. “Criamos um amor que é também fortaleza onde nos
protegemos e nos fortalecemos”, disse Mazé enquanto terminava o cuscuz. Mazé
chamou as amigas e juntas merendaram. Juntas permaneceram. E o amor-fortaleza
que construíram e agora davam nome continuou sendo o que já era: uma vida
possível. E uma vida feliz, Amazonas sabia.
Anansi Owère é o pseudônimo de Mário Silva, que prefere ser chamada apenas de “Mar”. Filha do crepúsculo da primavera de 1998, Mar é uma pessoa não-binárie, afro-brasileira cearense, escritora, clariciano, linguista, pedagogo e discípula de bell hooks. Vive pelo Brasil, mas mora em Fortaleza-CE. É, acima de tudo e principalmente, uma amadora — ama o que é e o que faz.