por Daniel Mazza__
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Morte do Avarento, Bosch |
(Com o fim do enterro o coveiro vaga pelo cemitério...
Do tronco de uma oliveira próxima a uma sepultura,
um ramo seco
desprende-se do tronco e
cai.
O ramo ressequido transmuda-se na Morte, que chama pelo coveiro.
O coveiro vira-se e pergunta se se trata de outro coveiro
que vem ajudá-lo com os demais enterros do dia...)
─ Memento mori, memento
Mori, mori, mori, mori,
Memento mori, memento
Mori, mori, mori, mori,
Memento mori, memento
Mori, mori, mori, mori,
Memento mori, memento
Mori, mori, mori, mori.
Se sou coveiro? Se não
Sou coveiro? Sim e não:
Mas eu não posso dizer-me
Coveiro por profissão,
Pois não trabalho com pás
E nem carrego caixão.
Portanto não sou coveiro
De cemitério, padrão.
Ser coveiro é mais que apenas
Ter alguma profissão:
É ao mesmo tempo da terra
Ser empregado e patrão.
Saber que embaixo da terra
Não há empregado ou patrão.
Saber que a maior das alturas
Nunca é mais alta que o chão.
Ser coveiro é mais que apenas
Ter alguma profissão:
Ser coveiro é ser filósofo,
E filosofar com as mãos.
Ser coveiro é ser filósofo,
É filosofar com as mãos
Que o morto enterram, o morto,
Que é a única conclusão.
Pois sejam nobres ou súditos,
Quem ergue o cetro ou o esfregão,
Quem senta no trono e reina,
Quem salta e rola, truão,
Eu os vejo todos despidos,
Nus a alma e o corpo estão,
Sem qualquer manto ou andrajo
Que lhes disfarce o que são.
As pompas e as honrarias
O luxo, a titulação,
As riquezas e a miséria,
A indigência, a humilhação,
São todos bem misturados
Durante a mastigação,
E, dentro da boca, sabem-me
A um mesmo gosto malsão...
Portanto não sou coveiro
De fato, coveiro, não:
Mas de certa forma, sim,
Tenho alguma profissão:
Um jardineiro que planta
Sob o chão do corpo são,
Sementes da morte, secas,
Que algum dia brotarão.
Sementes que logo após
A sua germinação
Fazem de um corpo morto
Um solo em putrefação:
Na ausência de toda luz,
Sob o sol da escuridão,
Cresce no ventre da terra
Um morto em gestação.
O morto há pouco enterrado,
Logo após a concepção,
Ainda não tem as chagas
Negras da putrefação.
O morto há pouco enterrado
Ainda um morto-embrião,
É um morto-máquina viva
Que por autoconsumpção
Fabrica ainda mais vida,
Vida é a sua produção.
Portanto esse morto-máquina,
Esse morto-tecelão,
No tear do seu corpo tece
E dá continuação
Ao fio da vida que eu mesma
Cortei com o meu podão...
E os olhos secos do morto
Que não podem mais, verão
Ou simplesmente mais nada,
Pois não podem mais, e não
Há nada para ser visto
Por qualquer uma visão.
Nada é o que há, ou talvez,
Morte que é revelação.
De todo modo haverá
Alguma revelação,
Ainda que nada sobre
Do ser e de sua razão,
Ainda que nada sobre
E sobre o nada, então,
Tudo explicado estará:
Inútil explicação.
Um dia da vida o segredo
Será, por fim, revelado.
E é pela boca da morte
Que o segredo será dado.
E não pergunteis à vida
Qual o seu significado:
Se ela é a imagem de um cubo
Ou a imagem de um quadrado.
Eu sou a de muitos nomes
Que em nome algum viveria:
Yama, Anúbis, Hades,
Quem em verdade eu seria
Entre todos esses nomes
De apenas mito e honraria,
Que muitos povos e raças
Deram-me ao nascer do dia?
Um dia, quando algum homem
Pintou na pétrea retina
Da rocha a morte que via
Na caçada vespertina:
Um cervo em sangue esvaído,
Agoniza, arfa, sibila,
Treme, agitado, e por fim,
Descansa e apaga a pupila...
...À noite, defronte ao fogo
Um clã de homens sentia
(A ideia era apenas semente
Na mente fértil) sentia
A presença de algo vivo,
Mas que vivo não seria.
A presença viva de algo
Que à vida transcenderia,
De alguma coisa maior
Do que aquilo que viam,
Embora nada soubessem
Além do que permitiam
As suas rasas retinas
Que apenas o mundo viam:
É que o homem dentro do homem,
Os homens, ver, não sabiam...
.................................................
Eu sou o silêncio nas casas
Onde outrora havia lida,
Confusão de tantas vozes
Do que é em família a vida.
Mas um dia a casa vazia,
No silêncio submergida,
Inundada de silêncio
De casa vazia e vazia.
O silêncio mais profundo,
Apagada a gritaria,
Ou mesmo quando arrefece
Dos monges a salmodia,
O fogo frio do silêncio,
A chama do fogo fria
Que cresce e esfria as paredes
Da abandonada abadia.
A fogueira outrora vívida
Agora extinta e esquecida,
Depois de tanto queimar,
Queimar-se, a própria vida.
As cinzas que se dispersam,
As testemunhas da lida,
Da luta que há pouco a chama
Travou com a treva fria.
O embate de morte entre
A chama e a treva fria,
Em que tão-somente a cinza
Sai vencedora irrestrita,
Em que as cinzas daquilo
Que foi essa vida algum dia
Dão testemunho e também
São testamento da vida.
Eu sou esse galho seco
Há pouco do tronco caído,
As folhas secas nos ramos,
As pétalas ressequidas.
Eu sou a que está germinando
Dentro de todas as vidas.
Aquela que está crescendo,
Agora mesmo, na vida.
Mas meu nascer não é vida,
Não bem assim entendida,
Porque o nada e o vazio
Também são partes da vida,
E quando nasce o não-ser,
Também aqui revivida,
A vida assume outra forma:
A forma de não-ser vida.
E meu nascer não é vida,
Mas a toda vida, ameaça,
Ainda mais quando a água
No rio do tempo é mais rasa,
Ainda mais porque a sede
Só o fogo da vida a aplaca,
Porque essa sede de vida
É maior quando a água é escassa.
Porque essa sede de fogo
De beber a chama da vida,
De incendiar-se por dentro,
De queimar-se até à vida,
Porque essa sede de fogo,
Ser fogo vivo, ser vida,
De não ter fogo: ser-fogo.
De não ter vida: ser-vida,
Porque essa sede de fogo
É mais viva quando a língua
Do fogo da vida exaure-se
E a voz da fogueira míngua.
Porque essa sede de fogo
É mais viva quando a fala
Do fogo da vida esfria
E a fogueira, enfim, se cala.
Foz...A foz da voz do fogo:
O rogo da voz do fogo
Ao coro do fogo, a voz,
O rogo da foz ao coro.
O choro do fogo ao coro
Do fogo, a voz, o rogo
Da voz do fogo, a foz,
O choro: o fogo morto.
...E não pergunteis à vida
Como são as suas águas,
Se são profundas e plenas
Ou águas ralas e rasas.
São águas, sim, de um rio,
Mas podem turvas ou claras.
O fato é que águas de rio,
Dormitam as suas águas
No leito salso do mar
Da morte insossa, salgada,
Águas de rio e de mar,
Inimigas abraçadas.
Pois se o rio da vida sempre
No mar da morte deságua,
Há, sim, das águas do rio
No corpo das águas salsas.
Mas o que, enfim, representa
O rio chegar ao mar?
O que representa a voz
De um rio silenciar?
Sob o sol da voz marinha,
Voz salgada e solar,
Voz com a força do fogo
No incêndio aquoso do mar?
A origem do fogo vivo,
Potência do que é viver,
Pois vida é atualidade
Calor que esplende do ser,
A origem do fogo vivo,
Potência do que é viver,
Está nas águas insípidas
Do rio-tempo a arder.
Ardem as águas do tempo,
Desse rio-tempo a correr,
Mas chega o dia de o fogo
Sobre o rio arrefecer,
Pois as águas consumidas
Cinzas vieram a ser,
E o fogo vivo da vida,
Sem água, vem a morrer.
E ainda quando a vida
É um rio lento e insosso,
Para a vida, pela vida
Vale sempre todo o esforço.
Porque a vida, represada
Que esteja dentro de um poço,
A vida é muito mais funda
Do que vê o olhar enganoso.
Porque a vida, que esteja
Represada em uma cova,
A vida é muito mais funda
Do que vê o olhar sem provas.
Porque a vida, represada
Que esteja na sepultura,
Transborda, porque, de fato,
Há mais água que fundura.
Porque a vida, sem a sua água,
Ainda é um rio caudaloso,
É um rio que quando seca
Sobe a água até o pescoço.
É um rio de leito seco
Mesmo quando cheio todo,
É um rio que não está
Seco ou cheio, pleno ou roto.
Porque a vida, sem a sua água,
Ainda é um rio caudaloso.
A vida, sem as suas raízes,
Ainda é um tronco bem grosso.
A vida, sem a sua carne,
Ainda é viva dentro do osso.
A vida é de fato um fruto
Bem menor do que o caroço.
A vida, seja rio ou árvore,
Seja enigma de carne e osso,
Ou um fruto amargo de polpa
Bem menor do que o caroço,
É dança sob uma música
Inaudível: dança nua.
Pois a música que a embala
É um silêncio que flutua:
Som inaudível da música
Do tempo que continua,
Mesmo depois que a dança
Da vida já não mais flua.
E se revela o segredo
Que é a dança da vida crua
Àqueles que saem da roda
Da dança que continua...
***
Autor: Daniel Mazza.
Livro: A Sinfonia do Tempo (São Paulo, Escrituras, 2014).
Daniel Mazza (Fortaleza, Brasil, 1975). Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará. Autor de quatro livros de poesia: Fim de Tarde (Ribeirão Preto, Funpec, 2004), A Cruz e a Forca (Fortaleza, Book, 2007) − Prêmio de Poesia Gerardo Melo Mourão; A sinfonia do tempo: primeiro livro de filosofia (São Paulo, Escrituras, 2014) e Sacrificium (Salvador, Mondrongo, 2020). A sua poesia foi analisada por vários críticos literários e poetas brasileiros, entre eles, Alexei Bueno, Anderson Braga Horta, Fernando Py e Marcos Pasche. Outras áreas de interesse: Filosofia Grega Antiga (Presocráticos) e Cinema (Roman Polanski). Contatos: @danielmazzamatos (Instagram), @daniel.mazza.50596 (Facebook). Site: https://independent.academia.edu/DanielMazzaMatos