por Ariel Montes Lima__
Edvard Munch Autorretrato |
1.INTRODUÇÃO
Me lembro que, aos dezesseis anos, minha música favorita era a 9ª Sinfonia de Beethoven. Àquele tempo, eu sofria de uma depressão severa, que me conduziu por seis anos em um caminho de total apatia e desinteresse pela vida. Curiosamente, porém, a referida música, cujo quarto movimento contém o celebre An Die Freude, o Ode à Alegria, escrito por Schiller e musicalizado pelo compositor seguiu sendo minha favorita entre todas as formas musicais que eu conhecia.
Não atribuo a isso qualquer sentido de erudição, mas sim à experiência transcendente que a música me provocava: a possibilidade de “respirar” outros ares, que não a névoa sufocante da depressão. Esse sentimento se tornou mais diáfano com a minha cura. Depois, mingou por completo com a imersão no mundo do trabalho, entre aulas para dar, literaturas para revisar, provas a corrigir...etc. O que me restou da veia artística, contudo, me incentiva a escrever ensaios.
Ademais, como Zambrano (2023) destaca, a razão é insuficiente para a compreensão da realidade. Nas palavras da autora:
La objetividad que parecía ser algo exclusivamente lógico, al faltarnos hoy en el desgraciado mundo europeo, vemos que era ante todo objetividad social, viva objetividad como una mano paternal, firme y protectora, que fuese atando disparidades, desenlazando nudos, señalando el camino posible entre la maraña.
Por esse motivo, opto por empregar uma linguagem mais pessoal, na qual tanto a pesquisadora quanto o objeto pesquisado compartilham de elementos constituintes intrínsecos. É dizer: não posso me desvencilhar da pessoa que sou stricto sensu para analisar meu tema.
Essa maneira de pensar a pesquisa em ciências humanas -sobretudo as ciências artísticas- é assenhoreada quando pensamos que a experiência proporcionada por determinada obra possui natureza subjetiva para aquele (a, u) que a contempla. Desse modo, a metodologia cartesiana, matemática e objetiva é insuficiente para estabelecermos elos coerentes de argumentação e compreensão do processo.
Assim sendo, nesse texto, me proponho a discutir três elementos chave para pensarmos a relação do sujeito com a arte: os afetos, a transcendência e a Pós-Modernidade. Essa pesquisa possui carácter teórico. Para construí-la, me vali da pesquisa bibliográfica. Enfatizo ainda que, dadas as próprias convenções do gênero ensaístico, esse estudo não visa esgotar o tema, mas propor reflexões acerca da relevância de semelhantes questões.
2.DESENVOLVIMENTO
A ideia de bios theoretikós, a vida contemplativa, apática e vocacionada à reflexão, recebeu grande atenção por parte da filosofia desde a antiguidade. Aristóteles, a seu turno, chega a conceber a vida contemplativa como a única forma de se chegar à felicidade legítima (ARAIZA, 2011). Para o pensador, semelhante filosofia não se limitava a ser um modo de pensar, mas -sobretudo- uma forma de viver (BARRERA, 2008); algo que me interessa discutir nesse momento.
Com efeito, a contemplação (artística, religiosa, existencial...) é um fator fundamental para a apreciação de uma obra de arte qualquer. Mais do que isso, se partimos do pressuposto idealista-alemão, proposto por Schopenhauer, de que o mundo é representação, assimilar as regras subjacentes das formas de representar o real em cada sociedade é fundante para a construção do sujeito individual. Comenta Cacciola (2014, p. 91-92) que:
As representações empíricas são [...] regidas pela lei causal, considerada por Schopenhauer como uma das modalidades do princípio de razão, a do devir. A elas sobrepõem-se as representações abstratas, ou seja, o conceito e a linguagem, regidas pelo princípio de razão do conhecer que, pressupondo sempre representações intuitivas, tornam possível a constituição dos sistemas, tanto das ciências como da ordem do mundo em que vivemos.
Em outras palavras, a inserção do sujeito no mundo é, antes de qualquer coisa, sua introdução a uma rede complexa de signos sociais da humanidade. Isso, segundo Ocker (2022) implica, na verdade, uma criação do real, sendo a representação, destarte, autônoma frente à incognoscível realidade material. A autora se vincula à corrente sociointeracionista, principalmente ao que propõe Vygotsky (1984;1987), segundo o qual o sujeito adquire o conhecimento por intermédio da relação com outro sujeito; e não com o objeto por si mesmo.
Digo isso, pois, uma vez que a experiência cultural é intrínseca à humanidade (GODOY; SANTOS, 2014), o contato do indivíduo com a arte é também uma ferramenta necessária à ampliação de sua visão social. Assim, interagir com a arte em qualquer manifestação é mais do que uma experiência subjetiva, mas uma vivência socialmente construída.
Por outro lado, a recepção e (em alguma medida) construção do(s) sentido(s) poético(s) de uma obra qualquer se fundamenta na identificação do sujeito com a obra, uma vez que o sentido é produzido a partir no “non-sens” inconsciente a partir do deslizamento do significante (PÊCHEUX, 2009). Isto é, a emoção provocada pela arte ser realiza porque o sujeito possui um “elo” de correspondência com a experiência impressa na obra artística. Esse mote é temporal e espacialmente diverso, algo que pode ser verificado pela pluralidade de formas de fazer artístico presentes tanto sincrônica quanto diacronicamente no mundo. Tal experiência, porém, somente é possível mediante o contato detido sobre o objeto artístico; contato esse que precisa ir suficientemente além do prosaísmo para produzir um efeito pessoal.
Assim, também a vivência da experiência humana e subjetiva é essencial para que o sujeito tenha a oportunidade de se relacionar com o objeto artístico. Para ser mais clara, talvez quem nunca viveu um amor nunca consiga sentir a catarse provocada pelo Liebestod de Wagner, no último ato de Tristan Und Isolde. Quem nunca experimentou a angústia de lidar com a burocracia da vida contemporânea, talvez veja O Processo de Kafka como um romance tedioso e banal. Quem nunca se desesperou verá O Grito, de Edvard Munch, como apenas uma pintura de má qualidade.
Afinal, a experiência de ser humano é, antes de mais nada, uma experiência de afetividades (WALLON, 2008; 2007). A esse respeito, diz Rayel (2017, p. 206):
[...] são os afetos alegres que aumentam a nossa potência. Será, então, selecionando tais afetos que teremos mais condições de tomar posse da nossa potência, isto é, de passar a enxergar as noções comuns, as relações que existem entre aquilo que nos afeta e nós mesmos.
O melhor caminho é conhecer-se e saber aquilo de que se é capaz. De que modo podemos conhecer aquilo de que somos capazes senão experimentando? De que modo conhecer os afetos de que somos capazes senão no exercício deles mesmos? Por essa razão é que precisamos "afinar" o instrumento que nos cabe nesta vida, "afinar" a nossa potência de ser afetados, se queremos nos tornar capazes de afetos ativos, isto é, se queremos conceber-nos adequadamente a nós próprios e entender o quanto de nós é causa adequada de nossos afetos, isto é, o quanto de nós está implicado naquilo que somos capazes de sentir.
Os afetos, pois, além de fundantes da própria condição de humanidade, são o que torna possível a identificação e experienciabilidade da transcendência na arte. Afinal, todo sujeito se constitui a partir de interações com outros seres (BAKHTIN; VOLOSHINOV, 2002). Essa interação, contudo, não se faz de maneira incólume. Todos (as, es) somos afetados (as, es) pela própria existência que levamos. Portanto, é simplesmente impossível que a condição de humanidade vivida por um ser não produza nele reações e transformações.
Ademais, como diz o adagio “a vida imita a arte e a arte imita a vida”. Isto é, há uma relação dialógica entre a experiência de viver e de sentir a obra artística. Assim sendo, é mister que o sujeito, para viver a arte, tenha -primeiro- que desfrutar de uma existência presente. Ou seja, que conheça elementos suficientes do mundo (semiótico, material ou representacional, a depender da corrente de pensamento) para que tais elementos produzam significação ao tempo do contato com a obra. Destarte, também o contato com a obra –uma vez realizado- torna-se experiência capaz de gerar a posteriori novas leituras e novas vivencias. Definitivamente, eis aqui o problema sobre o qual me dedico.
De acordo com Weber (2002), a ascensão da Modernidade implicou o desencantamento do olhar para a realidade; agora prosaica, fria e material, distante dos paradigmas mágicos e sobrenaturais da medievalidade. Assim, “a precariedade do sujeito em um mundo caótico, cujas transformações constantes e velozes, as catástrofes históricas e o cotidiano caracterizado pelo choque provocam um sentimento de insegurança e a perda da confiança neste mundo.” (MARÇAL, 2020, p. 11-12).
Esse novo mundo é marcado por ambiguidades e contradições, uma vez que o sujeito se encontra –paradoxalmente- cercado de estímulos, informações e possibilidades, mas carente de recursos para experiencia-los. Nas palavras de Bauman (2015): “estamos nos afogando em informações, mas sedentos de conhecimento”. Isso significa assumirmos que a estrutura componente do mundo pós-moderno se cunhou com base em uma forma inumana de viver, permeada pelos paradigmas neoliberais, capitalistas e mercadológicos.
A máxima temps est argent é seminal nesse ordenamento. Afinal, o tempo deixa de ser um elemento constitutivo da vida para tornar-se objeto mercantil. Isso é quase autoevidente, não fosse pela alienação pela qual passa a classe trabalhadora (MARX, 1991). Afinal, o critério mais tradicional para cômputo do pagamento de um trabalhador qualquer é seu tempo em serviço.
Nessa perspectiva, o mundo agitado e desencantado da Pós-Modernidade leva à perda do sentido transcendente das artes. Mais do que isso, contudo: a frigidez de uma vida baseada na exaustão pelo trabalho e pelo sem-número de demandas das mais diversas ordens rouba do indivíduo a possibilidade de interagir satisfatoriamente com a realidade. Por isso, também sua relação com o artístico-transcendente é esfacelada em prol de um sentimento de apatia e frieza.
O mundo pós-moderno, destarte, por sua própria constituição, impõe ao indivíduo a carência de sua própria vida, pois o subleva em meio à torrente de estímulos que o conduzem ao esvaziamento de sua humanidade. A apatia diante da arte –desprovida muitas vezes de significação aos olhos desse observador- não é, portanto, em vão. Mas sim porque não há carga semântica de sua parte para que possa reagir a tal significante.
3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de conclusão, apresento algumas possíveis considerações acerca do que foi dito anteriormente:
A experiência artística é ambígua. Por um viés, ela pode ser entendida como um conjunto coerente de sentimentos e afetos despertados e (re)significados a partir de seu diálogo com as vivências individuais anteriores. Por outro, a arte -como linguagem, principalmente- se encontra em um lugar semiótico-social, cuja relação com o sujeito implica, antes, uma relação de reconhecimento dos signos sociais nela presentes.
Pensando a arte pelo prisma individual, concluímos que essa se dá mediante diálogo com as experiências afetivas do sujeito previamente vividas. Assim, a significação da obra se realiza a partir da tríade experiência-sujeito-obra. Por essa razão, a vivência individual é fundante para a ampliação de suas leituras de mundo.
Sem embargo –e aqui se apresenta meu questionamento principal- encontramo-nos diante de uma realidade pós-moderna marcada pela lógica da exaustão. Esse paradigma rouba do sujeito sua própria experiência de vida e, por extensão, sua possibilidade de humanizar-se (no sentido mais abstrato) por meio da relação com o transcendente artístico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ariel Montes Lima é pessoa trans non-binary, psicanalista, escritora e professora. Em 2022, publicou os livros Poemas de Ariel (TAUP), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed.) e Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche). Atua como professora bolsista de língua espanhola na UFMT, além de coordenar o Projeto Ikebana Cultural, do qual foi membro-fundadora.