por P. R. Schneider_
Foto: Michelle Guimarães |
Na sexta-feira eu montei minhas armas, ergui meus muros, tracei minhas fronteiras e fui te encontrar, embaixo das árvores que testemunham timidamente a guerra muda de nossos olhares. Disse você que eu era estranho, disse eu que você é bonito, da beleza etérea, não estranha, assustadoramente comum, carregado de um ópio, um veneno que entorpece enquanto mata. Não houve tiros nessa batalha, seus dedos encontraram os meus numa sutileza diplomática, mas seus lábios demoraram, foram lendo, como um mar sereno que lambe as areias, delineando um litoral. E foi enfim numa praia que minha última resistência se desfez, a última fronteira dissipou-se. Te perdoei por erros que nunca existiram, te refiz após te fragmentar inteiro; e então seus olhos caíram sobre mim, acho que te rendi. Ainda te tenho? Você me tem? Te disse então a verdade;
– Você me olha, mas não me vê…
Creio que extraí de ti a ira inédita da paixão, mas, eu disse sem medo de impor a verdade, eu impus o mundo nas suas costas enquanto você me dava o apreço do que seria o amor e o que ele é, ou tenta ser, na imensidão total da palavra. Joguei ao vento mais e mais palavras sem ritmo nenhum, cheias de calor, de uma fragilidade pesada. Nunca soube o
que de fato me era dado, nunca consegui dar nome ao afeto, e mesmo que pudesse jamais o faria, acredito que dar nome perde essencialmente o sentido disto, dar nome é tirar o natural, é diluir o inerte para nossa necessidade humana de mecanizar e habituar. Não quero mecanizar isso que vivemos, o quero assim: naturalmente real.
Deito todos os dias olhando fixamente os universos no teto, não existe nada ali, é o caos que se levanta sobre mim, na catedral dos meus segredos. Seremos felizes? Estamos sendo, porém, por alguma razão desconhecida, ser feliz me apavora. Tenho medo de deixá-lo adentrar, medo de permitir e perder. De fato sei que perderei a consciência da intimidade prestes a ser roubada, saber que cada dia é um saldo que consumo, que cada hora é um saudosismo do futuro, uma nostalgia aprisionada no amanhã. Ainda assim, tenho ele – o tempo – como meu único aliado, meu único ponto de pertencimento entre o irreal e o físico, entre você e sua ausência. E eis você, me possuindo em tudo, me retendo mais do que eu posso te reter. Sendo agora uma parte indelével do meu passado e uma esperança imutável de meu futuro inóspito. Te aguardo, gritando secretamente seu nome entre lençóis.
Quando fui pela manhã no nosso palácio rosado, perdi a conta de quantas vezes senti teu cheiro, senti seus olhos me delineando, ouvi sua voz me dizendo o óbvio – eu jamais soube ver óbvio –, é um dos seus maiores ensinamentos: me ensinar a ver o que tem de mais explícito em você, minha brutal necessidade de ver o rio abaixo do mar e assim fazer com que eu me afogue vendo o sol cristalizar as águas na superfície. E voltamos ao nosso mar, aos nossos mares particulares que de alguma forma se encontraram, e foi-se então as horas e as eras. Enfim, tua volta. Teu silêncio. Minha espera. Acontece então teu sinal, eu respondo e me distraio da vida. Fico lambendo os olhos no calendário, mendigando do tempo uma rasa menção de rapidez. Como eu quero te ver e sentir o que de mim partiu contigo retornar. Inalar o sopro que volta a fluir em meu corpo, meu sangue bombear o peito e meu fantasma tornar-se matéria. Voltou. Abruptamente voltara.
Antes que meus olhos se cruzassem com os meus, a tua boca passeara por outras, e este olhar que era meu, tão intimamente particular, fora dado a quem quer que seja, onde quer que fosse. Sua volúpia não foi minha, foi esquartejada. Tomo a liberdade de ser triste e sofrer. Me dou o direito de sofrer, se não por mim apenas, mas por nós e por tudo que aconteceu. Seja nosso destino por vontade dos deuses ou pior a herança
das nossas juras mudas. Não importa o que seja, foi e é, nossa desgraça. Eu te amo, em veneração absoluta, dramática, errônea, absurda, imprestável, vil, sufocante, romantizada, agoniada, bestial e sádica.
Sofri em solidão, na imensa cratera que tornou-se nosso palácio rosado. Na absoluta solidão. Sem outros olhos, sem outras bocas. Apenas eu e minha mente, maquinando formas de aguentar mais uns dias, definhando para não morrer. Agora eis meu coração aqui e meu corpo inteiro definhando por estar vivo. Te odeio profundamente por não me amar como eu acho que sei que te amo, porém, não tenho o direito de te odiar. E se estou falando em direito, tenho então absolutamente o direito de sofrer mais do que consigo descrever. Enquanto eu te amava, encurtando na minha imaginação as distâncias, teu corpo era tragado por um outro corpo estranho. Aqui reside nosso abismo: eu era sugado pelos meus sentimentos, enquanto você estava embriagado por uma necessidade, que não invalido, mas não aprecio. Meu amor, você precisa ser menos óbvio. Sabia – como eu sabia! – que era assim sua forma de amar, estava nítido diante de mim, e fui.
Me joguei, com medo, mas sem nenhuma garantia. Minha carta começou como de amor. E agora é uma carta de ódio, quem sabe ela termine sendo uma carta de perdão? Perdoar o quê?
Estou aprimorando constantemente minha capacidade de sofrer. Não sei bem ao certo se isso é um elogio ou uma mácula na visão que tenho sobre mim mesmo. Meu amor, não possuímos o agora, nem o depois e tampouco o antes. Nós não temos nada. É apenas nosso corpo se deteriorando a cada encontro, como carcaças se chocando repetidamente uma contra a outra. Quando for a hora, eu deixarei você partir, enfim te dando o direito de escolher sua própria prisão.
6 de dezembro de 2022
P. R. Schneider - - Eu existo. Isso é o suficiente.