Pele alva e pele alvo, crônica de Davison Souza

por Davison Souza__



 



                    

*Pele alva e pele alvo 


Como uma reza, ele proclama o mesmo discurso:

“No país da democracia racial não há distinção entre pessoas, todas vivem em condições de igualdade, todas têm as mesmas oportunidades.”

“No país da democracia racial…”

Agoniado, seu funcionário o interrompe:

“Senhor, 80 tiros foram disparados no carro de uma família negra.”

“Coincidência”, disse ele.

Silêncio 

“Não façam tumulto, pois nesse país não há racism…”

Sua fala é interrompida pela anunciação do apresentador televisivo:

“Vereadora eleita foi morta a tiros no Rio de Janeiro”

Suspiro

enchendo a boca ele diz: “Ela defendia bandidos” 

Muda-se o canal

“Homem negro foi espancado até a morte dentro de um supermercado”

“Calma”

“É só um caso isolado”

“Devia estar roubando” disse ele, buscando justificar o ocorrido.

Senta em sua poltrona, bebe seu café e ao abrir o jornal se depara com a manchete:

“Polícia Rodoviária Federal torturou e matou um homem negro asfixiado dentro de um camburão”

Impunidade

Caso isolado número 8463684739… 

Perdi as contas.

Respirou fundo e exclamou com a força de quem busca transformar sua palavra em verdade.

“No nosso país todo mundo é tratado de forma igual”

Em seguida escuta:

“Extra! Extra! Extra!”

“Jovem negro é morto por bala perdida em ação Policial no morro”

“Devia ser bandido”, afirma ele sem tanta convicção. 

A mãe chora

Seus gritos ecoam 

Com a voz embargada ela grita:

“MEU FILHO, ERA SÓ UMA CRIANÇA”

O sangue-negro banha as intranhas do país

Encharcado de cumplicidade ele volta a proclamar:

“Sem histeria”

“Coisas assim podem acontecer”

“Ainda vivemos em uma democracia raci…”

Sua fala é interrompida pelos sons de tiros.

RAT-RAT-RAT! RÁ-TÁ-TÁ! RATATAAAÁ…

111

“O que foi isso?”, ele pergunta assustado.

Abre o computador em busca de respostas

no site o título da matéria em negrito escancara: 

“Um carro com cinco jovens negros foi alvejado pela Policia Militar”

Seu corpo-branco escorregando pela cadeira é a materialização de seu discurso - se desmanchando diante dos fatos.

Sua branco-consciência não reflete que ali está

Mais um sonho interrompido

No quente-asfalto identidades são enterradas 

Escorrendo no olho direito da família

Uma tonelada

É o peso da lágrima 

Grita-se

“JUSTIÇA!”

“JUSTIÇA!”

“JUS…” 

Não adianta, ela não escuta (sua branco-audição é seletiva)

Tem cor

Não escutou Mãe Bernadete.

Ele liga o rádio, em busca de uma música acalentadora, entre as estações, ele encontra sua música preferida

“Não quero te falar meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos…”

A canção de Belchior é interrompida pela notícia:

“Mãe de Santo é morta dentro de casa”

(in)justiça

repercussão? 

Não

Então ele diz, buscando convencer a si mesmo:

“Coisas mais importantes estão em jogo nesse país”

"Uma jovem branca luta por justiça contra sua família exploradora?”

Continuando ele diz:

“Temos prioridades”

Convencendo a si mesmo ele distorce sua visão, nega o real por não querer enxergar que

No país da democracia racial

O Estado marginal 

Aponta sua arma para a negra-pele

Sem pensar duas vezes, puxa o gatilho

Silêncio…

O sangue escorre na calçada

Tão vermelho

Menos um preto

Afinal, no país da democracia racial

“Existe pele Alvo”

“E pele Alva”



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*Título em referência a música Ismália do rapper Emicida.






Davison Souza - Filho do seu José e de dona Maria, nascido na periferia de Fortaleza, Pretagogo é formado em pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará - UECE, pesquisador em Educação para as relações étnico-raciais, Educação popular e Cotas raciais. Atualmente cursa o Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE-UECE). Compõe a coordenação do Coletivo Mapinduzi - grupo de estudos sobre intelectuais negras (CED-UECE). É artista e ilustrador digital, formado nos “corres” da vida. Expoẽ suas artes na página do instagram @pretart em que dialoga sobre arte e racismo. É autor do livro “Cota não é esmola: as cotas raciais na UECE”, que carrega o selo da editora Mirada.