por André Souto__
Primeiro trecho (página 20/21):
Por instinto, busco com os olhos a mala empoeirada suspensa na parede úmida, sempre pronta em caso de fuga. Só posso torcer para não falhar.
Aperto a empunhadura da pistola. Os nós dos dedos perdendo a cor. Aquele seria o caminho mais simples: deixar tudo para trás, encontrar outros falsos nomes, uma décima cidade. Mas com o avanço da gravidez, seria loucura continuar dormindo em barracas e fugindo das barreiras montadas em cada rodovia.
Precisávamos continuar fora do radar deles. A criança é prioridade, a razão de todo empenho, acima dos riscos, de todas as regras. Cada lugar, cada pessoa, uma ameaça em potencial.
Saco a Glock e bato a porta. Se você segue as regras, sobrevive.
Segundo trecho (página 42):
Entrei, acionando o motor e as travas das portas, antes mesmo de colocar o cinto.
Quando comecei a me deslocar, o apito de alerta ressoou enquanto um boneco luminoso piscava no painel, pela ausência do item de segurança.
Acelerei verificando os retrovisores todo o tempo, como havia aprendido no curso de direção tática. Mas fui interrompido pelo celular que vibrava no porta-copos perto do freio de mão, desviando meu olhar para um balãozinho brilhando em verde na tela.
Apertei a direção, os dedos ficando brancos. Merda, ela conhece as regras!
Reduzi a velocidade ao passar pela última cancela que delimitava a área de segurança do presídio, então li a mensagem: NÃO DEMORE!
Acelerei, lembrando de acender os faróis, que resplandeceram no asfalto molhado da estrada adiante, que terminava em um cruzamento em T.
Com cabeça se movendo de um lado para o outro, entrei sem sinalizar na pista cheio de rachaduras ligando o Complexo da Papuda ao Jardim Botânico, o caminho mais curto.
Droga! Eu sempre pegava uma rota diferente e aleatória, nunca as opções naturalmente disponíveis.
Mas havia o recado de Nina flutuando em minha mente, latejando. Não tinha tempo para aquilo. Cada segundo perdido era uma chance de queda.
Segui em alta velocidade, os espelhos mostrando as luzes de outros carros ficando para trás em cada ultrapassagem imprudente.
Terceiro trecho (página 49):
O medo é aquilo que conecta as pessoas. Um sentimento contagioso que permeia a humanidade obrigando-nos a recuar nossos desejos. É aquilo que nos intimida, por temermos as punições e não porque aprendemos a lição. Esse deveria ser o limite, algo que retardaria nossos impulsos animais, reprimiria as paixões. Mas até chegarem aos presídios de segurança máxima, todos os internos não pareciam se importar com essa prerrogativa social. Agiam como se não houvesse nenhuma ordem estabelecida, como se todos se curvassem aos seus dentes, uivos e armas. Entretanto, já na quarta noite no cárcere, se ouviam os primeiros gritos de protestos distantes, ainda no espaço gradeado entre as galerias, onde Érico e eu nos preparávamos para recolher os livros com conteúdo previamente avaliados. Nada violento entrava, ninguém queria instigar a mente de sentenciados a séculos de reclusão.
— Isso aqui é uma fábrica de malucos. — A já conhecida reclamação de Gangorra ganhou novamente a ala, percorrendo o trecho vazio de concreto.
— Fazem de propósito! Querem foder nossa mente! — Um segundo preso continuou a ladainha. — Mas eu não vou enlouquecer! Tá me ouvindo? Eu não vou!
André Souto, mineiro radicado em Brasília com a família, é servidor do Judiciário Federal e professor universitário. Diplomou-se em Direito, Geografia e é Mestre em Engenharia Civil pela UFG. Escreveu e protagonizou a peça Ventre Nosso, produzida profissionalmente em 2004, com espetáculos em várias capitais. Em 2017, publicou Ossos do Clima, uma novela literária. Sob a Luz Negra é seu romance de estreia.