por Adriane Garcia__
No dicionário Aurélio, genealogia é a “lista ou diagrama com os nomes dos antepassados de um indivíduo e a indicação dos casamentos e das sucessivas gerações que o ligam a determinado ancestral”. É interessante que a poeta escolha para sua genealogia um animal estéril, cuja árvore genealógica só pode ir para trás. A mula é o resultado do cruzamento forçado e cheio de logro entre o jumento e a égua. Um ser do passado que não pode gerar-se no futuro. Ao mesmo tempo, antiteticamente, a poeta nos dá uma muar demiurga, um ser de cuja excrescência o mundo procede. E aqui volta sua ideia de retorno marcando a raça: a muar demiurga sabe que “de rompante se apagou o sol/ nasceu assim décadas de/ quase séculos atrás”.
Riquíssimo em metáforas, Genealogia das mulas retrata a população brasileira, formada da mestiçagem em um processo histórico de estupros, sequestros, separações e casamentos forçados. Uma sociedade que só podia resultar em violência a partir de seu cerne formador cujo motor é a continuidade e não o rompimento. A voz lírica pergunta: “a que ponto outro chegaríamos?” Assim, lemos um poema que fala do episódio ocorrido em 2021, do incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato, facínora tratado como herói (em um país onde até o torturador Ustra o é). O atiçamento do fogo à estátua resultou na prisão dos trabalhadores responsáveis pelo protesto, sob a argumentação hipócrita de defesa do patrimônio público, quando sabemos que nosso patrimônio público rui em cada cidade que se passe, sem qualquer preocupação do poder público de modo geral. Em seus versos, Marília Kosby reflete: “as chamas são rastros/das mulas/desmioladas todas// as mulas sem cabeça”. No enfrentamento do poder, as mulas que reagem só podem ser mulas ousadas, “desmioladas”, que se arriscam diante do mais forte, sabendo que é luta perdida.
Também chama a atenção o quanto os poemas de Genealogia das mulas registra a escravidão como processo que deixa marcas profundas na sociedade, o que é confirmado por todos os efeitos do racismo e da violência policial, pelo genocídio da juventude negra que alcança números de guerra e os casos reiterados de assassinatos de crianças negras no Brasil, atingidas por balas “perdidas” ou “equívocos” de abordagens policiais, deixando claro que no Brasil existe uma infância branca e uma menoridade negra. O tratamento dos povos originários segue na mesma esteira racista e espoliadora. Quanto ao mundo do trabalho, os resquícios escravocratas podem ser observados na vida difícil dos trabalhadores e trabalhadoras, na exploração de praticamente todo o tempo de vida das pessoas, para muitos o descanso sendo apenas um prazo para chegar em casa, dormir poucas horas, e ir novamente para o trabalho; tudo isso aliado à péssima gestão do transporte público nas cidades, mais as condições precárias de moradia, alimentação, baixos salários e todo tipo de assédio suportado de maneira estoica. A voz lírica nos comunica um sentimento de ter partido de si um barco malungo, vizinho de outra embarcação, expondo a ferida da identidade com os seus, marcada pelo sofrimento e nos remetendo àqueles navios negreiros, insalubres e mortíferos, nos quais se vinha sem malas, sem pertences, para aportar sem nome. Marília Kosby nos revela as marcas da escravidão todas presentes, inclusive como fantasmas da violência, que ainda vivem e atuam.
Grande parte dos poemas faz referência ao período tenebroso da história brasileira, o do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, somando-se ao grande azar de sob seu governo boçal e genocida acontecer uma pandemia, ocasionando milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas se o presidente não estivesse exatamente do lado da morte: “a vacina que não vem”, o abandono e a desesperança. Comparecem nos versos de Marília Kosby a luta entre Eros e Tanatos. A fome, recorrente em alguns poemas, adensa a tragédia que atinge os pobres. A poeta é incisiva nos falando de um pão sem circo: “o pão neste poema é meramente figurativo”. E por mais que a situação leve os “muares” a uma paralisia, a poeta também convoca à participação política, um incômodo para os poderosos: “eu quis ir pra a rua/ ser um cisco /no olho da rua”. Uma vontade de vingança se abriga no coração muar: “...eu não/faria de algo/dão o chão de dor/ mir algoz”.
Utilizando imagens inusitadas e fortes, como as figueiras, árvores simbólicas (as mais antigas – as que tudo veem), sorvendo o sangue derramado sobre a terra, a poeta conta do poder de vida e morte do homem sobre a mulher e do poder da memória viva: “mandou enterrar a filha/ ainda viva sob a soleira da porta”. Aqui a ambiguidade alcançada pelo posicionamento palavra/verso, pois tanto dá-se a entender que o pai enterrou a filha viva sob a soleira da porta, quanto ela conservou-se viva em memória. A constatação da voz lírica é a de que o sentido da história tem sido de repetição: “a testosterona de ciro pulverizada /sobre o sertão da babilônia” vai até “o mitômano dando um giro de moto/pelo planalto”. Desse poder patriarcal a heteronormatividade massacra a população LGBTQIA+. Nos versos de Marília Kosby, a mulher lésbica resistirá com seu amor, ainda que haja uma desesperança por o humano obedecer a uma vocação de pensar “existir/ solução para os males/ do mundo que julgamos/ conhecer” e não conhecemos. Nisso reside o preconceito: não conhecer. Nossas soluções muitas vezes baseiam-se em nossa ignorância.
Se os muares carregam o estigma da linhagem obtida no abuso, são também eles/elas que detém a força e o conhecimento da sobrevivência nas piores condições. A voz lírica nos diz de um conhecimento ligado à natureza e suas forças elementais. O conhecimento do tempo como um relógio de sol, tempo natural que conhece as horas dos frutos. Aqui, a visão dos povos originários de que tudo está ligado, os elementos da natureza não se sobrepõem, mas se completam, simbioticamente. A humanidade não é algo apartado, como erroneamente se pensa e se destrói o planeta, nem mesmo apartam-se os tempos passado, presente e futuro. A poeta nos traz a lembrança da ancestralidade: “dos povos aborígenes/ tamborilando no cérebro/ tumoroso de minha avó”, resistindo a tanta tentativa de apagamento.
Marília Kosby, ao utilizar o vocábulo e o animal mula como centro de gravitação de seus poemas, lembra-nos a palavra de procedência pejorativa que por muito tempo classificou grande parte da população brasileira: as mulatas e os mulatos. Porém, encontra nesta origem não mais o pejorativo, mas a força dessa origem no que ela pode ter de consciência da violência histórica. Suas ferramentas para esse trabalho são múltiplas, de grande domínio poético. A poeta usa metalinguagem, fragmentação da forma quando o tema trata de fragmentação, deslocamentos quando o tema leva à voz lírica insone, deslocada, gerando trocadilhos deliciosos como: “deixava-me as tulipas enlatadas as pupilas digo/dilatadas”. Em sua estante, que comporta Szymborska ao lado de Audre Lorde, surgem muitos diálogos com outras poetas, como por exemplo este diálogo com Adélia Prado, num tom de era só isso que me faltava, já não fosse a carga da mulher tão pesada: “Muda já fui/ surda já fui/ cega/ agora, desdobrável…”. Em outro trecho de deslocamento interessantíssimo, a poeta ao contar de uma ave, provavelmente exuberante, troca o adjetivo de lugar: “era uma fome exuberante”. No bonito poema amoroso Duas jiboias, a voz lírica ao falar de um amor recorda um outro (invasão de lembranças), e quem lê não sabe mais qual amor viveu a história relembrada. Marília Kosby faz excelente arranjo posicional dos versos, sua partição para o melhor aproveitamento de ambiguidades: “aborto, nós não amamos/ necessário é, mas não conheço quem ame/ corpo algum” e é constante o uso de paradoxos muito bem elaborados com síntese notável. Aqui, por exemplo, no poema Cólera: “a água pode acabar/ com tudo”. Nas pouquíssimas rimas que a poeta usa, o faz de maneira exemplar: o efeito de humor é conseguido com palavras de idiomas diferentes e de forma inusitada, trazendo na referência o poeta satírico romano (lembrando que sátira tem na sua origem “saciado”): “e a gente doente e com fome/ora, quem dera fosse um clown/ vivêssemos a sátira do juvenal”. Não falta ainda a ironia como arma linguística e o uso do particular para o universal: “já me quebrei toda” até “cacos de américa do sul pra cá/flancos de África bem pra lá”.
Genealogia das mulas leva-nos a perceber a onipresença da crueldade. Sem condescendência consigo mesma, a voz lírica reconhece que sua educação com o dominador é um sintoma de burrice, flagra-se com inveja dos bichos e não dessa civilização “furreca” que nos sai cara demais. Chama-nos a perceber nosso cio, do qual querem nos distrair. Convida-nos a deixarmos de ser míopes, reaprender a ver de longe, largar um pouco as telas, ver o céu, a copa das árvores, cultivar o amor, o acolhimento, ter refúgio nas tempestades: “te cuida que as árvores tombam/ me espera com mate?” É um livro bonito para ter, ler, e ficar relendo.
Vocês que pensam
que a Terra está cheia demais
porque essa gente preta e pobre
não para de se reproduzir
– vocês que sonham
ardentemente com a volta
daquele tempo quando
oligofrênicos
parem de matá-los
cessem esse extermínio
essa sangria frigorífica
esse banquete de moscas
onde um vocês matam,
vis escrotos ignóbeis,
outras três nascem.
srs. pulhas, é uma lei
da natureza onde se ora, onde se chora
com quem se come
É uma lei da natureza, canalhas!
Que encontra – pusilânimes! – pulso
onde vocês, abjetos, apostam na morte!
***
Já me quebrei toda
os dois braços de uma vez
e a cara por consequência
as mãos fraturadas empurrando o chão em vão
quebrei a cara
dos colegas e os cascos no chão
pedrento de minas
me esfolei no ouro toda
trago quebrado um pulmão
o sangue um oceano
rasgando a pangeia
deslumbre de horrores
qual não é o alçapão de maravilhas
ampliou-se o mundo
cacos de américa do sul pra cá
flancos de áfrica bem pra lá
ampliou-se o mundo
multiplicaram-se os precipícios
e os obstáculos
à revelia nós
nunca mais paramos
de refazer aquele continente só
sob a sola de nossos pés
os cascos duros de mulas sobre
***
Genealogia das mulas
Marília Kosby
Poesia
Coleção Biblioteca Madrinha Lua
(curadoria de Ana Elisa Ribeiro)
Ed. Peirópolis
2023
Marília Floôr Kosby nasceu na cidade de Arroio Grande, extremíssimo sul do Brasil, em 1984. É poeta, compositora e doutora em atropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Publica poemas em revistas e antologias literárias brasileiras e internacionais, faz videopoemas e experimentações com poesia falada e música, além de dar cursos de criação poética. É autora de Os baobás do fim do mundo (Novitas, 2011) e Mugido [ou diários de uma doula] (Garupa, 2017, finalista do prêmio Jabuti 2018).
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)