Poemas do livro A memória é uma oficina de ossos, de Míriam Freitas

 por Míriam Freitas__






FALSO RETRATO DE WALT WHITMAN


Preciso

de uma caderneta para anotar teus versos

leão do mar, vítima da morte,

inseto nu rastejando pelas paredes

com os nevoeiros 

dos bares e becos do Brooklyn.


O revólver inocente atira nos olhos do animal

para que se reinvente o amor.


Na infância

contemplavas  as pequenas  estrelas

e as prendia em caixas de fósforos

como segredos do coração.


No poema,

um rosto alcoolizado 

obsessivamente multiplicado em cantos íntimos,

pedaços de si, de muitos outros, vozes com pássaros

de bicos de pólvora. 

Ranhuras na memória, explosões 

como válvulas de escape, conversas excitantes nas noites de Nova Iorque,

suores pelo corpo, água e sal, homem no homem,

existência  na pele do cão,  sede na carne dos lábios, 

precipícios. 

As últimas constelações (agora) estão dentro da ossada 

de teu duplo esqueleto.




VÉSPERA


Parar os sonhos com as mãos

colocar debaixo  das unhas

a ossada da memória

tocar o piano

quando lá fora

a neve assusta

os viajantes que chegam

no país do exílio

para escrever a urgência

da prece

às vésperas

da morte.



O PÃO DE CENTEIO DE OSCAR WILDE


No cárcere de Reading,  Oscar Wilde

escreveu na memória o pássaro

em flagelo

com as asas quebradas

os olhos com furos de pistola

as vísceras dobradas no canto da gaveta

os pés amputados pela navalha

da guilhotina.


Na prisão, havia túmulos de horror onde nasceram flores de pelúcia.

Havia sangue pisado debaixo da língua, líquidos e

lágrimas nos arrepios da morte.


Aos domingos, atrás das grades,

nas refeições matinais, 

o pão de centeio trazia o verso do perdão.

Oscar Wilde lambia os farelos caídos sobre o chão

com sua língua de fogo.


Na cela, ao sangrar a fome na garganta,

o coração de pedra escreveu as leis eternas

da humanidade

num caderno de vidro

sobre os homens que choram

sobre os homens que matam o que amam.



MÁCULA


Os ossos choram 

enrolados em pedaços de papel

como se a vida morresse

neste silêncio de uma tarde espessa 

sob rajadas de vento e tempestade.

Não há sorrisos dentro daqueles potes

de vidro.

Há um chumaço de vazio  e o nada.

O nada que sopra nos ouvidos

a mácula

e o desassossego destes punhos tristes.



A LIÇÃO DOS GIRASSÓIS DE VAN GOGH 


O amarelo arregalado da flor

emoldura o desejo de viver.


Viver na intensidade do vento 

pelos pátios cobertos por outras flores

sobre as veredas das colinas mais altas

e ir além, muito além,

dentro do  líquido azul dos mares.


Quantas razões têm para despertar o desejo?

O desejo amarelo é pleno.

Antes que morramos desidratados pelas guerras

íntimas

é preciso olhar a paisagem da janela

e viver intensamente

afogando-se em uma oração

como as pétalas tenras de um girassol que nasce.




Mírian Freitas é mineira, doutora em Literatura Comparada, professora do IFSUDESTE, campus Juiz de Fora. Publicou os seguintes livros: Intimidade vasculhada (2005), Exílios naufrágios e outras passagens (2016), Quase: poemas à sombra de uma árvore (2017), Caio F. Abreu: uma poética da alteridade e da identidade (2021), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (2021), Mosaico (2022), A memória é uma oficina de ossos (2023).