por Gabriela Lages__
Sobre viver
Minha casa é o mundo.
Navio sem porto.
Minha comida é esmola.
Chuva no deserto.
Invisível, que sou,
Ando para sempre e nunca.
Selene
Sou parte do universo,
mas não estou à deriva.
Sou atraída por uma
força maior do que eu,
maior do que a vida,
maior do que tudo.
Sou feita de fases.
Metamorfose em curso.
Sou o reflexo da luz estrelar.
Espelho solar.
Sou o silêncio da noite.
Um silêncio que pulsa e grita.
Um silêncio que controla as marés.
Silêncio, luz e sombra.
Macabéa
Com quantas Macabéas se faz
o mundo? Mulheres pacatas,
desajeitadas, silenciadas, que
quase não deixam marcadas
suas imagens no espelho.
Macabéa, até quando aceitarás
o destino que te impuseram?
Até quando permanecerás invisível?
A ilha de pedra
Certa vez foi dito que
Precisamos sair da
Ilha para vê-la,
Em sua plenitude.
Daqui observo os telhados,
O traçado das ruas,
O ir e vir de pessoas
Carros e motocicletas.
Daqui enxergo tudo claramente,
O verde quase inexistente,
O ar cinzento,
Os lugares invisíveis.
Daqui vejo a ilha de pedra
Edificada sobre os restos de vida,
Onde todos correm sem destino
E os dias são sempre os mesmos.
Anúncio
Extra! Extra! Vende-se uma casa
pegando fogo. Comporta bilhões
de moradores. Vista espetacular,
desde que não se importe com o
ar levemente tóxico, as praias um
tanto impróprias para o banho, as
temperaturas um pouco desreguladas.
Meus caros, essa casa pegando fogo
é tão grande, tão rica, desde que não
se repare nos simples problemas e
viva como se não houvesse amanhã.
Vênus
Folheando uma revista, deparo com
um rosto, uma história. Uma mulher
impecável, a beleza personificada.
Mas, ao observar atentamente sua
face, vejo apenas uma forma, um
esboço de vida. Folheando o grande
livro da história, deparo com uma
luta ancestral pelo pomo da discórdia.
Muitos sóis e luas se passaram, e a
pergunta permanece: quem é a mais
bela? Com o passar das estações,
em um giro pelo globo, as formas
mudaram, sempre mais apertadas,
inalcançáveis e cruéis. Talvez, em um
futuro distante, alguém compreenda
que a beleza é um espelho de muitas faces.
Gaia
A cada volta, um novo ciclo.
Estou presa nas areias do tempo.
Passam-se dias, meses, anos, e
aqui estou eu. Já presenciei muitas
histórias, desse ser, que em mim habita.
Como mãe, que sou, contemplei todos
os passos de meus filhos, em cavernas,
aldeias, reinos, impérios, metrópoles e no
que ainda está por vir, nessa longa estrada.
Presa nos ponteiros do relógio, observei
guerras intermináveis, o passar de incontáveis
estações. Flor, folha, neve e sol. Vi a vida
ressurgir, o amor permanecer, um novo
ciclo começar, sonho ou liberdade?
A janela
Aqui dessa janela,
Eu vejo o mundo enquadrado.
É certo que os vidros estão
Um tanto embaçados e,
Até mesmo, trincados
Em alguns pontos.
Mas, daqui, eu enxergo
A vida lá fora.
Dessa janela,
Eu observo a lua, o sol,
O passar das estações,
O ir e vir de pessoas,
Que através de outras janelas
Contemplam o mundo
Sob outros tons.
Talvez, após alguns reparos
Em minha janela,
Eu enxergue a vida
Sem meias-palavras ou
Quem sabe, eu só fique
Mais ludibriado com
Os sons inaudíveis
De lugares fora dos meus horizontes.
Ouroboros
Desde o início dos tempos,
a raça humana buscou meios
para sobreviver. Quanto tempo
caminhou sem destino algum.
Não existiam raízes que ligassem-na
a terra. Os recursos eram sugados,
até a última gota. E, logo após, a
jornada continuava, sempre a mesma.
Em um certo dia, algo mudou,
o ser humano notou que poderia
cultivar o seu próprio alimento.
E, assim, plantou, bem fundo, suas
raízes e começou a se afeiçoar pelo
lugar onde estava. Um lar, quem sabe.
Entretanto, nos ciclos sem fim de Gaia,
a raça humana vaga novamente, na
eterna busca por algo inominado,
perdida em suas pegadas na areia.
O mar de vidro
Em tua fria e funda lâmina,
encontram-se mistérios
escondidos, o medo do
confronto com verdades
ocultas, ou, quem sabe de,
simplesmente, perder-se.
Tua dura água reflete
e encanta os Narcisos,
levando-os ao eterno
descontentamento.
Teu lume frio revela
a fera interior que, em
vão, tenta-se esconder.
Espelho, és o poço mais
profundo que existe.
Em uma só mirada
atravessas as barreiras
do tempo e da vida.
Mágico, sombrio ou
verdadeiro, apenas,
és um mar de vidro.
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