Quatro poemas do livro O Guru, de André Luiz Pinto

 por André Luiz Pinto__





CAIXA DE PANDORA




O mais aconselhável

é que se cozinhe, em banho-maria, a esperança.

Que se administre, gota a gota, a esperança.

Que a sirva crua, ciente

das especiarias

que não virão.

É costume também

comprá-la

em caixas, pois

ela é o pior

que nos reserva

e o que temos de pior.

Deprimente

que nossa espécie

tenha acabado assim

num formigueiro

e que um candeeiro

ainda se acenda.







AFASIA




O nome, esqueci, mas está na gaveta do armário.

Existe uma palavra para quando se entende

a coisa e não como se fala.

Parece um fogo brando –

e que a poesia ajuda, às vezes.

Nas horas mais agudas

costumo olhar para o céu

e assim ganhar tempo de tirar

da cartola a tal palavra.

Outra palavra parecida é perdão.

Yoga – em que reitero

calma & paz.







QUARENTENA




A casa não nos quer, olhe os sinais:

é o caso desse apartamento mal humorado

em que as prateleiras não sustentam mais os livros

a frigideira não desengordura. Há mais teflon que carne

em nossa comida e o varão quebrado das cortinas

só me explica como, se ninguém se pendura.

O sofá que não andava bem fazia tempo

decidiu morrer. São migalhas de pão

que eu varro do peito, feno no lugar

do cabelo, a cabeça cuspida de um lindo bebê.







DIA





Sábado. Dia de Santo Ântonio.

Do outro lado da rua, fiéis se aglomeram.

A igreja não está abarrotada, só cheia o suficiente.

São seis horas, e a garoa que corta a cidade é serena.

Faço o café. O segredo para um bom café

está em dar uma fervida prévia no bule

ainda mais com doze graus lá fora

como o hálito escovado de certas bocas

que a gente beija e se dá bem. E a neblina

se adensa, cerca nossa rua, e a igreja desaparece.



* O Guru, lançado em 2023 pela Editora Patuá.









André Luiz Pinto da Rocha nasceu em 1975, Rio. Doutor em Filosofia pela UERJ, leciona na FAETEC e SEEDUC/RJ. Dos livros de poemas, estão, entre outros: Flor à margem (1999), Primeiro de abril (2004), Isto (2005), Ao léu (2007), Terno novo (2012), Nós, os dinossauros (2016) e Migalha (2019), e Balanço, poemas reunidos (1990-2020). Seus poemas serviram também de tema para os filmes “André Luiz Pinto, esse sou eu” e “Autobiografias poético-políticas”, de 2019, por Alberto Pucheu.