por André Luiz Pinto__
CAIXA DE PANDORA
O mais aconselhável
é que se cozinhe, em banho-maria, a esperança.
Que se administre, gota a gota, a esperança.
Que a sirva crua, ciente
das especiarias
que não virão.
É costume também
comprá-la
em caixas, pois
ela é o pior
que nos reserva
e o que temos de pior.
Deprimente
que nossa espécie
tenha acabado assim
num formigueiro
e que um candeeiro
ainda se acenda.
AFASIA
O nome, esqueci, mas está na gaveta do armário.
Existe uma palavra para quando se entende
a coisa e não como se fala.
Parece um fogo brando –
e que a poesia ajuda, às vezes.
Nas horas mais agudas
costumo olhar para o céu
e assim ganhar tempo de tirar
da cartola a tal palavra.
Outra palavra parecida é perdão.
Yoga – em que reitero
calma & paz.
QUARENTENA
A casa não nos quer, olhe os sinais:
é o caso desse apartamento mal humorado
em que as prateleiras não sustentam mais os livros
a frigideira não desengordura. Há mais teflon que carne
em nossa comida e o varão quebrado das cortinas
só me explica como, se ninguém se pendura.
O sofá que não andava bem fazia tempo
decidiu morrer. São migalhas de pão
que eu varro do peito, feno no lugar
do cabelo, a cabeça cuspida de um lindo bebê.
DIA
Sábado. Dia de Santo Ântonio.
Do outro lado da rua, fiéis se aglomeram.
A igreja não está abarrotada, só cheia o suficiente.
São seis horas, e a garoa que corta a cidade é serena.
Faço o café. O segredo para um bom café
está em dar uma fervida prévia no bule
ainda mais com doze graus lá fora
como o hálito escovado de certas bocas
que a gente beija e se dá bem. E a neblina
se adensa, cerca nossa rua, e a igreja desaparece.
* O Guru, lançado em 2023 pela Editora Patuá.