por Manoel Tavares Rodrigues-Leal__
Reflexão-Refracção
O som digno designar – veio vivo ao ouvido – signo palavra
gravar o gesto grave ou grande ave de fogo
que zona azul ou voz velada se invertem e ouvem logo
latejam as lajes de inúmeros dias nomeados água antiga
e o voo de luz violando o véu do corpo o corpo lava lavra
Lx. 18-6-70 – único poema do capítulo “Reflexão-Refracção”
*
Inscreve-se o puro (abraço breve) espaço
de uma cidade incandescente da pedra depuro
o mapa do poema respiração rasa
às ruas / rodas rubra espiral
como emudecer o cego aço
dos passos o âmago amargo da casa
Coimbra – 11-5-71 […] Óbidos – 18-12-72 – do capítulo “Casa Cantante”
*
Anexo ao anel da noite
ao anelo da noite o afluxo de sexo
nasce o elo a árvore mais ardente
no centro do papel cerce o silêncio
alimenta sua espessura de que carece
o canto e seu amador ausente
Coimbra – 7-11-71 | Lx. – 1-12-71 – do capítulo “Alquimia e Arquitectura” (ao Eduardo Jorge)
*
Certa solidão da luz – certeira, violácea –
o corpo antiquíssimo alveja.
Em janeiro a luz jaz até ao limite do lume.
Oh corpo incólume de prazer túrgido
(percussão de súbito sol) cujo fulgor foge:
só negrume surge.
Lx. 13-1-72 – do capítulo “Alquimia e Arquitectura”
*
Que alegria se despe
se despede das setas do teu corpo ausente.
Lentas as letras do dia se desenham:
só morte o teu amor consente.
Fevereiro é uma vasta alegoria de desejo
que sobre o teu corpo se suspende.
Lx. 28-2-72 – (à Isaura) – do capítulo “Inverno do Verbo”
*
(Ave ou Voz?)
Ave que o pensamento aprisiona
sobre o corpo se agita ar
água côncava angustiada
que expõem sua superfície lisa
de que errado voo
se liberta a antiga ave? Ave
ou voz? Oh pensamento grave
que em torno da ave gravita
agora a ave agoniza
de seu curvo curto percurso
sua escassa alvura
morto o pensamento de que a ave
se alimentara morto o corpo denso
que o silêncio ocupara
Lx. 22-3-72 – do capítulo “Inverno do Verbo”
*
(Área de Alegria)
Área de alegria
que só o olhar aloja diurna água
ou curso de água mesa de tristeza
em maio ou julho
acesa onde a urna do pensamento
pousa ou ousa
sua lágrima mineral ou sopra
seus instrumentos de tristeza mortal
e da minuciosa mineração
dos sons de tristeza da mesa
dos sonhos acesa
esta atenção roda a pura rosa
do esquecimento
Lx. 21-7-72 – do capítulo “Inverno do Verbo”
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* Coligidos do caderno A Composição da Presença por Luís de Barreiros Tavares
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Lisboa, 1941-2016) foi aluno das Faculdades de Direito de Lisboa e de Coimbra, frequentando até ao 5.º e último ano, mas não concluindo. Em jovem conviveu com Herberto Helder no café Monte Carlo frequentando com ele “as festas meio clandestinas, as parties de Lisboa dos anos 60 e princípios de 70”. Nesses anos conviveu também com Gastão Cruz, Maria Velho da Costa, José Sebag, entre outros. O seu último emprego foi na Biblioteca Nacional, onde trabalhou durante longos anos (“a minha chefe deixava-me sair mais cedo para acabar o meu primeiro livro, A Duração da Eternidade”). Publicou, a partir de 2007, cinco livros de poesia de edição de autor. As suas últimas semanas de vida foram muito trágicas, morrendo absolutamente só.