Trecho do livro Eu me amo (eu acho), de Sabrina Guzzon

 por Sabrina Guzzon__





                                         
Trecho extraído da página 12 a 15


Carta para um deles


De vez em quando as crises aparecem. Bem leves. Logo percebo e consigo acertar a minha medicação. Fica tudo aparentemente bem. Minha psiquiatra está sempre alerta e diz que já sou quase uma especialista no assunto. De tanto que me entendo e conheço minhas reações em relação aos remédios e acontecimentos.


Posso até ser considerada meio hipocondríaca. É verdade. Aceito a denominação e nem me ofendo. Eu acumulo remédios. Uso todos os dias. Tenho até orgulho disso.


E quando essas crises aparecem, eu tento refazer a história na minha cabeça. Tento me lembrar de você. Tento fazê-lo parecer real e não um sonho, um tanto brega, que inventei e vivi sozinha. Pareço um pouco maluca chorando do nada. Mas logo passa.


Tento pensar em você de formas não amorosas. Sinto raiva. Vejo em você um monstro. Imagino o que pensou ou por onde viveu. Invento um motivo para te querer mal. Já dei

socos em almofadas fantasiando ser seu rosto. Pois é.


— Foi de propósito. Você fez tudo de propósito. Queria o meu mal. Queria me ver assim.


Transformar as pessoas em uma versão que não gostamos é uma ótima técnica para tentar esquecê-las. No entanto, com você isso não tem funcionado muito bem.


Já se passaram dez anos. Esquece essa porra. Supera. Segue sua vida, caralho. Se pelo menos eu não tivesse enlouquecido. Se pelo menos não tivesse dado tudo errado na minha vida depois. Se pelo menos eu estivesse de férias na Itália com um novo amor. Magra. Linda. Bem-sucedida. Ah! Sim. Seria bem mais fácil.


Mas quando a vida vira uma sequência de ondas intermináveis de covid-19. Quando você não sabe como criar seus filhos. Quando falta dinheiro. Quando falta amor, sexo, autocuidado. Quando não tem terapia. Aí fica complicado sair da lama e fingir que estava apenas fazendo tratamento para a pele. A lama seca entra por dentro das unhas. Suja. Fede.


Eu sonhava em viver a vida inteira com o amor da minha vida. Sabe o que aconteceu? Envelheci, passando de galho em galho. E nunca poderia ter um amor desse tamanho.

Nunca teria, porque não sabia nem como me amar. Me respeitar. Quando a gente não se ama verdadeiramente, não consegue receber, muito menos reconhecer esse amor vindo

dos outros.


Me acostumei com migalhas. Me acostumei a doar muito de mim. Me acostumei a dar mais do que receber. Me acostumei também com relacionamentos abusivos, dos mais diversos. E a verdade é que quando você é alguém como eu, você acaba atraindo quem se serve em seu banquete.


Eu sei, é possível que digam que a culpa não é da vítima. E realmente não é. Mas o que sinto, do fundo do meu coração, é que eu aceitava e até mesmo procurava relações assim. Até me sentia bem, tinha segurança. Muito amor me dava fobia. E, não à toa, afastei tanta gente que gostava mesmo de mim.


Cheguei a ponto de amar você por algum tempo. Veja bem: você. Você que nunca passou de nada além de uma ideia descabida de amor. Amor platônico. Amor desmedido. Ou amor confundido. Pode chamar como quiser. Um certo tipo de amor que não faz bem, de fato. Amor que só vem de um lado nunca é o melhor tipo de amor, certo? 


Amor precisa de respeito, reciprocidade, carinho, cuidado. Isso nunca existiu entre a gente. 


Agora chega de falar de você. Este livro não é mais sobre a nossa vida imaginária. É sobre a minha vida. As minhas escolhas. As minhas memórias. A minha volta por cima.



Capítulo 2


Enquanto escrevo, eu também escuto músicas. E já te imagino lendo e seguindo minha trilha sonora, sabe? Assim, nossa conversa fica mais íntima, interativa e menos séria. Porque para mim é sobre isso. Colocar histórias no papel é ter a capacidade de encará-las e sorrir para o passado. É abraçar nossa versão anterior com amor e nos fazer aquele carinho que, talvez, tenha nos faltado. 


Engana-se você se acha que esse foi o único cantor cheio de charme e talento pelo qual me apaixonei. Não, não. Me apaixonei por vários. Alguns me davam bola e outros nem me viam perdida no meio da plateia. O mais engraçado é que não foram poucas as vezes em que, no meio da multidão, achava que o olhar do vocalista era direcionado para mim. Sim. Para mim. Ele estava cantando aquelas letras só para mim. Eu seria a escolhida. Eu era especial. 


Quando conheci o primeiro músico realmente muito famoso, eu, que sempre fui uma negação para me lembrar das coisas, não o reconheci. Mesmo vendo-o chegar com toda banda no hotel, onde eu aguardava com os fãs que iriam acompanhá-los para o show. Era um trabalho importante. E eu, estagiária na época, tinha recebido essa tarefa. Tinha dezenove anos. Muito nova e já cheia de responsabilidade. Até porque, na minha vida, tanto quanto sexo, existem trabalho e esforço. Trabalho desde os dezesseis anos. Faço sexo desde os dezoito. 


Estávamos no hotel, eu e mais uns seis desconhecidos esperando a banda. Aguardamos um tanto. Mesmo depois de chegarem, continuamos esperando. Check-in, malas, instrumentos, todos prontos. Entramos no ônibus rumo à praia, o show seria lá. Me sentei no último banco, na janela. Turma do fundão. Logo ele veio se sentar ao meu lado e conversamos durante o trajeto. Ele era bonito, atencioso, não se parecia em nada com um artista egocêntrico e blasé. De fato, não era o perfil pavão, esnobe e distante, como eu achava que eram todos os artistas. Imaginava, é claro, porque não conhecia artistas. Então, nem podia imaginar o óbvio: todos são gente como a gente. Com muitos problemas e medos. Com muita vida acontecendo por trás dos holofotes. 


Ele era um cara comum, com um sotaque lindo. Óculos e um jeito nerd irresistível. Sim, sou dessas que adora pessoas inteligentes. Ele tinha muitas histórias para contar, todas na ponta da língua. Muito engraçado. Logo me interessei por ele e comecei a mentir sobre minha vida. Eu era de família de classe média, me casei cedo pensando em sair de casa e ter minha independência. Quem acha que será independente se casando? Pois é. Eu. Me casei aos dezenove anos, mas disse para ele que só tinha namorado. Nada me impediria de chegar mais perto daquele rapaz encantador. 


Eu não sabia, mas ele também estava me enrolando. Durante a viagem, não me disse que fazia parte da banda. E me fez acreditar que ele era do staff. Quando subiu ao palco, caí de quatro. 


Finalmente, os olhares que vinham de um cara da banda me encontravam lá embaixo. Eram para mim. A energia de um show é incrível e eu sentia tudo aquilo intensamente. Jovem. Linda. Envergonhada. Fascinada. 


Logo viramos bons amigos ou um pouco mais do que isso. Passei muitos anos escutando algumas músicas e me lembrando dele. Só porque ele cantava para mim no carro, nos nossos encontros. Achei romântico e impossível de esquecer. 


Nesse mesmo dia, ele também veio com frases de amor inigualáveis: me diz o que você quer de mim? Quer que eu seja seu namorado? Seu amigo? Seu marido? Seu amante? Me diz o que quer de mim. 


Vou dar uma chance para você adivinhar o que respondi. Pensa um pouco. Uma menina cheia de traumas, cheia de medos. O que responderia? 


Hoje, sem dúvida, teria uma resposta melhor. Na época, só consegui dizer: não sei. Pois é, minha gente, quando você não sabe o que quer, acaba ficando sem nada. E assim foi. 


Depois daquela viagem de ônibus, acompanhei diversos shows. Eu era figurinha carimbada nos bastidores. Mais uma, sei bem. Mas eu estava sempre por lá. Sexo na areia da praia, em diferentes hotéis, em diferentes lugares do Brasil. Jantares românticos, festas, cafés da manhã. Reuniões de trabalho. Sempre que tinha uma brechinha na agenda, lá estávamos nós. Fizemos um tanto de loucuras por aí durante mais de vinte anos de amizade. 


E de novo um vai-não-vai na minha vida. Um eterno namoro ou amizade. Na verdade, mais um amor daqueles impossíveis. Que nunca, de fato, seria um amor da vida. Apenas trouxe esperança e desejo de sonhar. Mais um amor também inventado. Como você pode ver, sou bem boa na arte de me iludir e de ficar nesse lugar. 


Talvez isso tenha acontecido em função do sexo. Nunca conseguimos estabelecer uma verdadeira química na cama. Combinamos em muitos lugares. Mas não aí. Sempre um pouco desajustados, desequilibrados, tortos. A mão sempre  no lugar errado. O beijo não preenchia. Muito mais desejo do que satisfação sexual. 


Não que eu ache que sexo seja tudo. Mas é importante ter química. Amor tem um pouco de cada coisa. A gente não tinha. E quando falta esse lado, a relação acaba se tornando uma relação de irmãos. Pessoas que se amam e se respeitam, mas que não irão muito além disso. 


Dizem que depois de um tempo, quando velhinhos, é normal as relações se transformarem. Mas eu ainda me iludo, me imagino velhinha ao lado de alguém com tesão por mim. Com quem divido histórias engraçadas, amorosas e sexuais. Será que existe esse tipo de amor por aí? Você conhece algum casal que se ama loucamente e que consegue manter o desejo através dos anos? 


O grande desafio também é esse. Além de encontrar alguém que você ame loucamente, é preciso tentar loucamente manter esse amor vivo e estimular o cérebro constantemente. Sim. O cérebro. Acho que muitos amores acabam em função de pensamentos errados, falas tortas ou até mesmo coisas não ditas. 


O cérebro é muito importante para uma relação e para o sexo. Eu gosto de gente inteligente. 


O cérebro me atrai mais do que os corpos, estimula minha libido. Mas o corpo também precisa contribuir na química. Não tem muita explicação, não sei o que faz essa química. Para mim, é um grande mistério. 


Nunca me atraí fisicamente por um padrão específico. Era mais inteligência e química, com os mais diferentes tipos físicos. Eu gosto de conexão de corpo e de alma. 


Não vou mentir. Senti conexão algumas vezes, mas não consegui manter. Foi mais culpa minha do que do outro. Não culpo ninguém além de mim. A questão é que, me amando pouco, também não permitia que me amassem. Eu não conseguia amar o outro de uma forma assim tão aberta, serena e completa. 


Engraçado que minha mãe sempre me disse isso: “Você precisa se amar”. Repetia isso muito durante minha adolescência. Eu nem entendia o que ela queria dizer. Por que me dava aquele conselho? Ela estava certa. Eu precisava mesmo. Mas o caminho em busca da minha autoestima foi longo. Nesse caminho, fui tropeçando em diversas histórias amorosas. Mal sabia eu: sempre fadadas a não darem certo.


Capítulo 6


Vamos aproveitar que no capítulo anterior falamos de dente e entrar em uma bad trip. Senta e troca a trilha. E se prepara para acolher uma linda menina de 13 anos. 


Essa memória não deveria fazer parte da vida de uma menina tão nova. 


Já escrevi algumas vezes essa história, contei para muitas pessoas. Tentei tirá-la de mim de tantas formas, mas existe uma trava até hoje. 


Só me lembrei disso aos vinte e cinco, depois de fazer muita terapia. Havia esquecido. Não imaginava que isso era possível. Trauma, minha gente. Estudando, fiquei sabendo que é comum as pessoas deixarem dores escondidas no subconsciente. Algo que foi muito doloroso se esconde na mente e fica por lá. Se não lembramos, não dói menos ou não incomoda pouco. É apenas uma tentativa de engano para viver melhor. Claro que isso não funciona, mas explica aí para a cabeça. 


Comecei a usar aparelho aos 8 anos e usei por muito tempo. Anos demais. Na época, ia ao dentista sozinha muitas vezes. Era muito nova, mas ia sozinha. Ninguém desconfiaria daquele profissional renomado. 


Existem abusos óbvios, mas existem os discretos. Na maior parte são discretos. São do tipo que não sabemos denominar. Há abusos velados. Existem abusos rotineiros, mal percebemos. E têm os aparentemente inofensivos. Entre todos os tipos de abusos, eu me vi sendo vítima de vários deles. 


Os abusos óbvios, mesmo assim não os percebemos. A cidade é Porto Alegre. Ali estou na cadeira do dentista. Sua mão passa por meu corpo. Ele beija minha boca, diz que me ama. Eu não gosto do seu hálito, sinto nojo. Mas não consigo falar. Tenho medo de magoar, incomodar. Sinto que a culpa é minha.


 — Você é linda. Tão linda. 


A culpa é da minha beleza. Eu sou tão linda que ele não pode parar de dizer que me ama, nem de beijar minha boca. 


Eu nem sabia beijar na boca. Odiava a ideia de beijar na boca. Aliás, minha boca era horrível. Além de ter aparelho para tudo quanto era lado, parte do meu aparelho parecia ser cabresto de cavalo. Tenho pesadelos até hoje com isso. Eu passava vergonha por causa dele. Não usava com frequência. 


E assim o abusador me manteve por perto. Por muitos anos. Por meio do aparelho que, no final das contas, nunca arrumou meus dentes. 


Às vezes, penso se deveria ter denunciado quando me lembrei do que aconteceu. Quantas crianças devem ter passado por isso? Mas não lembro do seu nome. Não tenho provas. Como encontrá-lo? Várias pessoas disseram para eu ficar quieta e não contar nada para ninguém. A agressão vem de tantas formas que é difícil descrever. 


Silêncio. Medo. Mas a cena final dessa história, por sorte, não é trágica. É tensa. Tive a ideia de dizer para o dentista que minha mãe tinha mandado tirar o aparelho. De uma hora para outra, pensei nisso e falei. Eu não aguentava mais aquela situação e mentir me pareceu uma boa opção. Ele não teria como averiguar com a minha mãe se aquilo era verdade, já que eu sempre estava sozinha. Ele ficou furioso, tirou o aparelho com violência, com uma cara de transtornado. Quando ele pegou uma faca, sim, uma faca que tinha no consultório, ouvimos um barulho na recepção. Era o próximo paciente. Fui salva pelo gongo. Ele abriu a porta e me mandou embora. Saí correndo. 


Saí correndo e me salvei, pensei. Porque levei um susto quando ele pegou a faca de maneira ameaçadora. A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi: ele vai me matar. Achei que dali não sairia viva. Pode ser que minha lembrança da faca seja maior do que ela era de verdade. Porque, afinal, eu era uma criança. Foi desesperador. 


Até hoje é difícil não sentir culpa por toda e qualquer coisa. A culpa me perseguiu a vida inteira. Se eu pudesse falar com aquela menina de 13 anos, diria para ela que não teve culpa. Ela não tem culpa. 

Com o tempo, a gente vai ressignificando as coisas. Digamos que é um instinto de sobrevivência. É preciso olhar os nossos traumas, os nossos problemas, de outra forma. É preciso encarar. Falar. Olhar para a ferida e, enfim, vê-la secar. Só assim conseguimos enfrentá-la com mais leveza. Para levar a vida de um jeito menos doloroso. 


É possível que grande parte das histórias que você está lendo, e ainda vai ler neste livro, parta daqui. De um período de abuso que me tornou essa pessoa tão insegura e cheia de traumas. Acredito em uma soma de acontecimentos que nos transformam. Então, nunca é apenas uma coisa. Mas, definitivamente, esse momento foi significativo na construção da minha personalidade. Busquei fugir de muitas formas. E eu consegui fugir dessa situação mentindo. Coisa que odeio loucamente, até hoje. A própria narrativa que escolho em meus livros traz muito dos fatos verídicos. Justamente por essa minha busca constante pela verdade, pelos acontecimentos que saem das profundezas do nosso ser e ganham vida com um toque de fantasia. 


Aprendi, depois de muito tempo, que quanto mais eu for sincera com os outros e comigo, melhor fica minha vida. Assim, consigo lidar melhor com tudo. Aprendi também que a fantasia e a magia também são necessárias. Para embalar melhor nossos sonhos.







Sabrina Guzzon (@sabrinaguzzon) nasceu em Porto Alegre/RS, morou em Cambridge enquanto estudava no Reino Unido e atualmente vive em São Paulo, capital, onde passou mais da metade de sua vida. Publicitária e escritora, “Eu me amo (eu acho)” (Editora Paraquedas) é seu quarto livro. Antes dele, publicou duas obras independentes (“Louco é quem não ama” e “A terapeuta virtual”) e “Emiliano”, pela Editora Giostri. Considera seus dois filhos, Maria Flor e Antônio, suas mais incríveis criações.