A Heróina trágica e o arquétipo da Mulher Terrível: Religião, Loucura e Insubmissão no Mito de Medeia

por Ariel Montes Lima___



 

   
A HEROÍNA TRÁGICA E O ARQUÉTIPO DA MULHER TERRÍVEL: RELIGIÃO, LOUCURA E INSUBMISSÃO NO MITO DE MEDEIA


 

RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo analisar a relação entre o mito de Medeia e o contexto cultural da Grécia Antiga, explorando como a figura trágica de Medeia é moldada por influências culturais e sociais da época. A metodologia utilizada incluiu análise textual do mito de Medeia, com ênfase na tragédia escrita por Eurípedes (2022), juntamente com uma revisão de literatura que abrangeu fontes acadêmicas e históricas relevantes. As principais referências consultadas incluem os trabalhos de Adaid (2017) sobre a misoginia na Antiguidade, as análises de Dutra sobre o mito de Medeia em Eurípides, as considerações de Palma (2007) sobre o discurso literário, e as reflexões de Santos (2013) sobre a dimensão formativa da tragédia grega. Por meio dessa abordagem metodológica, busquei compreender como o mito de Medeia refletia e influenciava as normas culturais da Grécia Antiga, especialmente em relação à feminilidade e à insubmissão feminina.


Palavras-chave: Medeia. Tragédia Grega. Insubmissão. Heroína Trágica.


 

INTRODUÇÃO


Não há como dissociar o legado cultural da Grécia Antiga da produção tragiográfica de seu tempo. Nesse sentido, o teatro exerceu funções primordiais no florescimento e manutenção da cultura grega alimentando-a e ratificando determinados pressupostos que compunham o éthos de seu tempo. Nesse campo, nomes como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes mereceram destaque não apenas entre os representantes da cultura de um tempo, mas também como expoentes da produção poética (a tragediografia era escrita em versos) de todo o Ocidente.


Assim, não podemos promover uma análise de conteúdo mitológico e literário sem levar em consideração os pressupostos culturais vigentes ao tempo da reprodução de determinadas histórias. Como afirma Palma (2007):


[...] o discurso literário pode não ser apenas ligado aos procedimentos adotados pelo autor, mas também, e talvez mais diretamente do que se pensa, ligado ao contexto sócio-cultural no qual está inserido, evidenciando-se, nem sempre claramente, uma influência das instituições que o cercam na escolha de determinados procedimentos de linguagem.


Desse modo, propomos, no presente trabalho, uma análise do mito de Medeia enquanto um discurso cultural de um povo e um tempo.

 

A ÉPOCA TRÁGICA DOS GREGOS E A FUNÇÃO PEDAGÓGICA DA TRAGÉDIA


De acordo com Dutra (2005), Medeia representa a noção da mulher bárbara ultrajada que, no ímpeto de vingar-se de Jasão, seu marido, mata seus próprios filhos. Isso representa uma violação das leis humanas e divinas.


Medeia é uma figura proeminente na mitologia grega, conhecida por sua conexão com o herói Jasão e sua busca pelo Velocino de Ouro. A história da princesa é uma narrativa repleta de amor, traição, vingança e magia.


Medeia era filha de Eetes, o rei da Cólquida. É sabido ainda que a primeira possuía conhecimentos em poções, tornando-se uma feiticeira temida e poderosa. Seu caminho cruzou com o de Jasão, quando ele chegou à Cólquida em busca do Velocino de Ouro, um objeto mítico.


Medeia se apaixonou por Jasão e, usando suas habilidades mágicas, o ajudou a superar as tarefas desafiadoras impostas por seu pai para obter o Velocino. No entanto, sua ajuda envolveu atos traiçoeiros, como o assassinato de seu próprio irmão, desencadeando uma série de tragédias.


Após a fuga bem-sucedida com o Velocino e Jasão, eles se casaram e tiveram filhos. No entanto, a traição de Jasão, que se casou com a princesa Creusa de Corinto, provocou uma reação de intensa raiva e desolação na protagonista do mito. Ela estava determinada a buscar vingança.


Como forma de se vingar, Medeia mata Creusa e, em seguida, seus próprios filhos. Após cometer tais atos, ela foge de Corinto em uma carruagem puxada por serpentes, deixando Jasão arrasado.


Em suma, o mito de Medeia está repleto de ambiguidades incorporadas na figura de sua protagonista. Medeia é retratada como uma mulher poderosa, mas também como uma figura trágica, cujas ações desencadeiam consequências devastadoras.


Outrossim, deve-se assinalar que o teatro possuía um papel formador da cidadania na Pólis, assumindo, por isso, a função pedagógica de educar os cidadãos àquele modus vivendi. SANTOS (2013, p. 31) salienta que:


“[...] no itinerário ascendente da cultura grega e sua peculiar compreensão da necessidade de formação deste homem coube, portanto, ao gênero trágico esta função educativa proeminente e justificada por Aristóteles, devido seu caráter imitativo das ações. Portanto, ao acompanhar o enredo da tragédia, o espectador se envolve e se reconhece através do evento mimético, possibilitando assim a passagem da ignorância para o conhecimento, confrontando seus limites, ambiguidades e contradições. Enfim, a tragédia continha a força expressiva de representar no palco sua matriz existencial, exercendo papel imprescindível e basilar na compreensão do sentido existencial do povo grego. Tal aspecto tornou-se mais e mais evidente devido ao forte espírito religioso e moral desse povo.”


Portanto, opormos o mito e a tragédia possibilitam múltiplas abordagens e leituras. Evidentemente, isso implica uma tomada discursiva de posição, uma vez que recortamos uma escritura do mito e uma escritura da tragédia- fato que influi na construção do sentido aproveitado-. No entanto, semelhante eleição está de acordo com a proposta do presente estudo.


 

O ÉTHOS DA FEMINILIDADE NO MUNDO GREGO


Antes de propriamente pensarmos no contexto de produção e escrita de determinados mitos, é necessário que destaquemos qual o ponto de partida para semelhante análise. Sem embargo, o conceito chave para desanuviarmos tal perspectiva é o conceito de éthos. Para tanto, nos valemos do trabalho de REIS (2009), segundo o qual esse vem a ser:


Termo de origem grega utilizado em retórica, que significava o costume, o hábito, o carácter que o escritor ou orador adoptava para dar uma imagem dele mesm que inspirasse confiança no público; designa igualmente uma descrição explícita alusiva dos costumes da época.


No livro "Teogonia" (66) de Hesíodo, é mencionado que o termo "éthos" está relacionado com "nómos" (costume, convenção, instituição, lei). Em várias ocasiões, "nómos" é associado a "éthos", com ambos representando conceitos semelhantes, conforme evidenciado nas "Leis" de Platão (VII 792 d-e). De igual maneira, pode ser interpretado como o carácter ou a maneira de ser, como sugerido por Platão em "A República" (VI 490 c).


Aristóteles, na sua obra "Poética", equipara o significado de "éthos" ao que atualmente denominamos psicologia das personalidades. Nesse contexto, "éthos" é assimilado como uma norma interiorizada, consistindo em um conjunto de máximas éticas que orientam a conduta na vida.

Ao longo de sua extensa obra, Aristóteles frequentemente alude a esse conceito, como é o caso na "Ética de Nicômaco" (II 1, 1103 a), onde distingue duas categorias de virtudes: as virtudes do pensamento (dianõetikaí), que são adquiridas por meio do ensino, e as virtudes do caráter (ethikaí), que se desenvolvem por meio do hábito, demandando, consequentemente, paciência e tempo para serem cultivadas. Na "Retórica" (II 12-14), Aristóteles também categoriza diferentes tipos de "éthos" com base em fatores, em particular, a idade.


Em relação a esse ponto, não é exagero dizermos que o mundo grego na Antiguidade foi marcado por um veemente horror e desprezo a tudo aquilo que referenciava o feminino. ADAID (2017, p.68) evidencia que:


As mulheres geralmente eram  analfabetas e a única educação que recebiam dos pais era voltada  para  seu  futuro  como  esposa,  ou  seja,  a  mulher era meramente uma procriadora. Existiam as hetairas  que  eram  mulheres  mais  interessantes  e com mais conhecimentos que as demais. Muitos homens gostavam  de  suas  companhias,  pois  não  atuavam como prostitutas apenas. Quando o marido achava que já tinha herdeiros suficientes, ele simplesmente parava com a relação sexual marital. Havia tanta falta de afinidade entre os cônjuges que  eles  dormiam  em  quartos  separados    o  que  talvez não ocorresse entre as famílias menos abastadas. Dada a total falta de intimidade entre o casal, prosperou nessa época o uso de masturbado-res para as mulheres. Visto que, após o casamento, as mulheres só  se  relacionavam  socialmente  com  outras mulheres, é provável que a relação homossexual  feminina  tenha  sido  uma  prática  comum,  visto que dificilmente seria descoberta e não havia qualquer risco de engravidar.  [...] O falocentrismo e a misoginia  na  Antiguidade  parecem  tão  fortes  que filósofos, poetas e pensadores nem se deram ao trabalho de deixar um relato para a posteridade. Talvez em uma tentativa de anular o passado feminino.


Tendo em vista esses aspectos, volvemos o olhar para Medeia. No texto de Eurípedes, a personagem, agora vivificada em palavras proferidas por um ator, encarna como uma mulher cruel, vingativa e desapaixonada. Suas falas são marcadas por expressões de ódio e raiva. Como se pode ver em Eurípedes (2022):


Medeia

Ai! Ai!

Sofri, desgraçada, sofri males muito para lamentar.

Ó filhos malditos de mãe odiosa,

perecei com vosso pai, e a casa

caia toda em ruínas.


Ao mesmo tempo, se percebem elementos de dor, tristeza e desesperança nas falas da protagonista, como se nota a seguir em um trecho da mesma obra:


Medeia

Ai! Ai!

 O fogo do céu me trespasse a cabeça.

 De que vale ainda viver? Ai, ai!

Quem me dera deixar a vida odiosa,

pela morte libertada!


Ao término da leitura, enfim, Eurípedes escreve na última página o seguinte:


Coro

De muita coisa é Zeus no Olimpo o Senhor, e muita coisa os deuses fazem sem contar. Vimos o que se esperava não realizar, para o que não se sabia o deus achar caminho. Assim vistes o drama terminar.


Com silencioso acatamento do caos e da tragédia, a obra termina com a morte dos filhos de Jasão e Medeia e fala acima do coro. O texto deixa em quem o lê um sentimento de profundo dissabor perante a despersonalização dos sujeitos perante os sofrimentos inelutáveis dom destino.


A protagonista, por sua vez, que, no mito, pode ser lida como triste, louca ou puramente má, aqui assume um caráter passional e vingativo de aspecto raso em relação às múltiplas leituras possíveis da história popular.

 

AS REMINISCÊNCIAS DA MULHER TERRÍVEL


O mote trágico da mulher terrível perpassa diversas eras e se mantém ubíquo no mundo contemporâneo. Entrementes, a força de tal imaginário –já hoje apresentando sinais de desgaste- encontrou no bojo da misoginia estrutural grega um terreno fértil para desenvolver-se e reiterar-se à maneira de um leitmotiv histórico-social sempre disposto a arbitrar sobre a conduta feminina.


Nos atendo propriamente ao texto do tragiógrafo grego em diálogo com o éthos de seu tempo, é possível notarmos determinados pontos dignos de nota. O mais importante deles é a caracterização da própria narrativa acerca da personagem. Medeia, uma estrangeira e mulher, é vista sob o prisma de uma figura terrível por atentar contra uma instituição sagrada: a maternidade. O que a leva a isso é o ódio contra um homem. Com efeito, a ideia de insubmissão feminina é um ponto que tem causado frisson ao longo de muitas épocas e foi, inclusive, tema de outras obras gregas da Antiguidade, como: Antígona (Sófocles) e A Greve do Sexo (Aristófanes).


Sem embargo, o mesmo espanto vindo de uma sociedade marcada pela misoginia a uma mulher que não, se submete às convenções que a oprimem é aquele que empreende uma narrativas que visa, em muitos níveis, cercear o ser feminino. O ataque à Medeia e sua demonização como mulher terrível não parece vir do fato dela matar seus filhos. Ao contrário, essa narrativa de terrificação do olhar para com um ser sem amor pela própria cria mais parece ser um recurso cultural para a manutenção do controle sobre os corpos femininos, cuja sagrada e inegável função é reafirmada como a da procriação. Ou seja: Medeia não é insubmissa por ser horrenda, mas, por ser insubmissa, é vista como horrenda. E, nesse ínterim, a narrativa da mãe bárbara e assassina é instrumentalizada para manter uma estrutura de opressão.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS


No presente ensaio objetivamos analisar, em diálogo, o mito de Medeia e sua tragédia com a estrutura sócio cultural de sua época. Observamos que o éthos grego da Antiguidade foi permeado pela misoginia e baseado no férreo arbítrio para com a disposição dos corpos femininos.


Foi percebido que a função social da tragédia na formação do cidadão influiu para a construção de uma narrativa enviesada sobre a figura da protagonista. Medeia, destarte, é observada e (re)encenada como uma figura marcada pelo tríptico tristeza-loucura-maldade.


Finalmente, propomos que uma leitura acerca da história em questão não se pode ater apenas à construção material do texto dos tragiógrafos. Pelo contrário, é fundamental a leitura em acordo com a observação do momento histórico no qual foram escritos tais trabalhos, uma vez que o período em questão agrega junto de si toda uma esfera de interpretação de mundo. Essa questão, destarte, influi na concepção do texto como um discurso de um sujeito inserto em um tempo e um espaço circundados por uma cultura.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ADAID, Felipe. HOMOFOBIA E MISOGINIA NA ANTIGUIDADE: GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA. Revista brasileira de Sexualidade Humana – 2017. Disponível em: https://www.rbsh.org.br/revista_sbrash/article/view/10/7. Acesso em 25 de Ago. de 2022.


DUTRA, Eneo Moraes. O MITO DE MEDÉIA EM EURÍPEDES.  Universidade Federal de Santa Maria. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/download/11403/6878. Acesso em 25 de Ago. de 2022.


EURÍPEDES. Medeia. Disponível em: https://letras-lyrics.com.br/PDF-Download-Book-Livro-Baixar-Online/Euripides/Medeia. Acesso em: 25 de Ago. de 2022.


PALMA, Moacir Dalla. DISCURSO LITERÁRIO: LINGUAGEM INTRINSECAMENTE DIFERENCIADA OU TEXTO INSTITUCIONALMENTE DETERMINADO? Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários Volume 9 (2007) – 1-124. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa. Acesso em: 25 de Ago. de 2022.



Ariel Montes Lima
é pessoa trans non-binary, psicanalista e professora. Em 2022, publicou os livros Poemas de Ariel (TAUP), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed.) e Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche).