Negação à Memória: Registros e Outros Escritos | Davison Souza

 por Davison Souza__


Andarilhando pelas veredas do Ceará, ao suave som da voz de Lineker, sentindo o sol-ardente descendo no horizonte e a lua brilhando no céu-estrelado, pensávamos sobre a infância, em meios as risadas, fotos e estórias nos vimos sem memória. Pois, a falta de registros sobre esse período, era condição de uma não lembrança.

Como crianças negras nascidas no fim do século XX, e infânciando no início dos anos 2000, brincávamos livres nas ruas das periferias de fortaleza, sentindo a terra-mãe com a sola dos nossos pés descalços, pisando devagarinho naquele solo sagrado, um espaço-tempo em que éramos felizes - isso é o que nossa fragmentada memória nos diz.


Sendo-nós negros e periféricos, o acesso às tecnologias era um privilégio que não podiamos usufruir, a preservação da memória era através da oralidade, sabíamos sobre nossos ancestrais (avós e avôs - o mais longínquo que conhecíamos de nossa linhagem) por meio das estórias contadas e narradas por nossos pais e mães. Não havia registro escrito, nem fotografias. A imaginação desenhava os rostos daquelas pessoas (des)conhecidas pela memória de uma narradora conhecida.


Percebi em conversas com pessoas brancas, como sua memória era ativa, suas estórias de infância eram vivas, lembravam de vários detalhes e contavam com entusiasmo sobre os causos desse período. Ao mesmo tempo, pessoas negras sentem dificuldade em lembrar-se de sua infância, visto que para muitos e muitas de nós, esse foi um período sem registro, portanto, passível de ser esquecido por nossa memória em formação. Como as populações brancas sempre tiveram acesso às tecnologias e o privilégio do registro (por meio de sua história disseminada em todos os espaços da vida social) escrito ou fotografado, é comum que relatem histórias de gerações passadas, de seus e suas bisavós tataravós e demais antepassados, bem como tenham acesso aos seus rostos e corpos, por meio de fotografias e/ou pinturas. 


Refletindo sobre a negação a memória, percebo o quão intencional e violento foi essa política de genocídio (sim, genocídio) pois, o apagamento da ancestralidade negra, significa morte, uma morte articulada politicamente por um estado racista. E esse apagamento começa em África, quando as populações que ali viviam foram escravizadas e antes de ingressarem em enormes navios, andavam ao redor de uma árvore, eram (forçadamente) batizadas, para receberem um nome cristão. Começava, assim, a primeira negação - negava-se o nome.


Ao atravessarem a Calunga, sem nome e objetificados como mercadoria para saciar os anseios da branquitude sedenta por sangue, as populações africanas chegaram às Américas, em uma terra que não era sua, foram submetidas pela pedagogia da chibata, buscava-se com isso, desterritorializar esse povo de si, eis a segunda negação - a perda de identidade. A desumanização forçava-os a esquecerem de sua terra-mãe. (ressalto, que houve, sim, desde África, lutas e revoltas contra esse sistema).


Com o “fim da abolição da escravatura” em 1888 as populações negras (pois, deixaram de ser povos africanos) foram jogadas à marginalidade numa sociedade que não reconhecia sua cidadania. Com isso, em 1890, o então ministro das finanças, Ruy Barbosa, mandou queimar em todo território nacional, os registros referentes à escravização. Começa, assim, a terceira negação - o acesso aos registros - de onde viemos? 


Albert Memmi regista que o colonizado (nesse caso, as populações negras em diáspora) está condenado a perder progressivamente a memória. Fruto de uma ação intencional, a negação a memória é uma ferramenta posta pelo Estado racista brasileiro para “controlar” a maioria de sua população, pois, um povo que não conhece sua história, seus heróis, heroínas, reis e rainhas, vai perdendo o poder de imaginar-se livre e as perspectivas de luta se tornam distantes...


A oralidade é importante e fundamental para a nossa ancestralidade, mas dispor de outros registros se faz necessário contra o apagamento de nossa memória. Registrar nossas lutas, estórias, sonhos e o sorriso negro dos nosso e nossas é um ato de amor, portanto, um ato de (re)existência.




Davison Souza é filho do seu José e da dona Maria, nascido na periferia de fortaleza, Pretagogo é formado em pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará, pesquisador em educação antirracista, educação popular e política de cotas raciais. Atualmente cursa o Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE-UECE). É artista e ilustrador digital, formado nos “corres” da vida. Expõe sus artes na página do Instagram @pretart, em que dialoga sobre corpos negros e seus diversos atravessamentos na sociedade racista do Brasil. É o autor do livro Cota não é esmola: as cotas raciais na UECE, que carrega o selo da editora Mirada.