O espaço entre a matéria e os corpos na poesia de Zoë Naiman Rozenbaum

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ENTREVISTA | O espaço entre a matéria e entre os corpos nas influências da poesia sobre a finitude do amor de Zoë Naiman Rozenbaum


E eu te matei bem aqui” (Editora Laranja Original, 100 pág.), livro recente da escritora paulistana Zoë Naiman Rozenbaum (@zoe.nr) lida com as muitas facetas da ideia do fim de uma relação. A sensação de luto, os resquícios de toxicidade, a violência inerente também do idealismo do amor romântico, do processo de cura e libertação. Miscelânea que de alguma forma denuncia uma multiplicidade da própria autora. Cientista social formada pela USP, onde desenvolveu a sua pesquisa “História, Poder e Narrativa: Representações literárias da Revolução Haitiana no Caribe” (2020), integrando o coletivo de pesquisa em antropologia CANIBAL (FFLCH-USP) - Zoë é atriz em formação, além de escritora e pesquisadora. Vive atualmente na França, onde estuda arte dramática no Conservatório Darius Milhaud Paris XIV. 


Em 2021 atuou na peça B de Beatriz Silveira, dirigida por Ines Bushatsky juntamente com o grupo de pesquisa cênica F de Falso. Naquele ano, escreveu e publicou de forma independente  o livro de poesia: “Mergulho em Apneia”. No seu E eu te matei bem aqui, as influências não se limitam à literatura, passando pelas obras de escultores franceses como Camille Claudel, Auguste Rodin, Bruno Catalano e Jean Bernard Du Seigneur. 


bell hooks e Ana Cristina César também tem efeitos diretos na obra, além de outros  que ela lia enquanto finalizava o manuscrito, perpassando Patti Smith e Cecília Meirelles. O resultado de tudo isso é curiosamente algo que ecoa o espaço negativo das artes plásticas como a escultura. Feitas de matéria e da falta de. Ou como resume bem a artista visual e escritora Tóia Azevedo, que assina a orelha do livro: “Zoë Naiman Rozenbaum escreve os buracos que o amor deixou pelo caminho. Se trata de uma poesia que, ao encher as páginas e descrever ricamente situações e lugares, acaba por evidenciar o espaço entre dois corpos que outrora foram uníssonos.”


Leia a entrevista completa com a autora:


1 - Quais são os temas centrais do livro? Como chegou neles? 


Amor e violência. O livro desenvolve o ciclo de vida e morte do amor, do fim do amor, da ruptura amorosa de um amor violento. Questiona-se o amor, sua existência, validade ou legitimidade ao longo do livro. É um caminho que começa na morte e termina em seu renascimento, o amor-próprio. Sendo assim, a obra também tem como eixos centrais temas como o relacionamento abusivo e a toxicidade do ideal romântico ocidental, além da desilusão e da ruptura com esse mesmo ideal.


Esses temas me atravessavam no momento em que escrevia, ou seja, textos soltos em caderninhos, devaneios, pesadelos, ideias perdidas, versos incompletos, poemas não finalizados, escritos obsessivos. Escrevia tudo isso sem saber que escrevia um livro. Escrevia de maneira obsessiva sobre esses mesmos temas, com um formato parecido, uma mesma voz, a mesma retórica. Em um dado momento juntei tudo e me dei conta de que escrevi poemas que dialogam entre si. Talvez mais do que isso, textos que falam por mim tudo aquilo que me ficou engasgado, preso em nós na garganta. Juntei tudo e me dei conta de que tinha em mãos um manuscrito. 


2 - O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo?


A escrita do livro não foi exatamente planejada, simplesmente aconteceu. Foi uma questão de necessidade, uma condição de sobrevivência enquanto vivia um momento de luto após uma ruptura amorosa. Precisava colocar no papel todas as palavras, com suas letras pontiagudas, os sentimentos, pesando toneladas nas costas e no peito, ideias não ditas que me sufocavam, pesadelos teimosos que não saiam da minha cabeça. Estava tudo acontecendo, explodindo, dentro de mim, e a escrita conseguiu reunir os estilhaços desse meu corpo quebrado de dor. 


Foi em janeiro de 2022 que comecei a reunir todo o material produzido, principalmente textos que datam desde o final de 2019 (nesse processo apareceram uns achados raros de 2017 e 2018 que eu nem lembrava que existiam e também contemplaram o livro). Todos esses textos tratavam sobre esses mesmos temas, entrelaçando, articulando-os, mesmo que tivessem sido escritos em épocas diferentes. Uma vez que terminei de compilar tudo, continuei escrevendo ainda mais alguns-muitos poemas ininterruptamente ao longo de duas semanas, inspirados também pelos escritos encontrados. Escrevia dias e noites sem parar, ouvindo em alto e bom som faixas ecléticas, de música clássica ao rock progressivo. Em um dado momento, terminei de escrever tudo aquilo que precisava escrever (ou sentia precisar), e alguma coisa parecia nascer, tomando sua forma. Uma goteira que parava de pingar. Era “E eu te matei bem aqui”.


3 - Que obras influenciaram diretamente a obra?


“Tudo sobre o amor”, de bell hooks, “A teus pés”, de Ana Cristina César, mas diria também “Devoção”, de Patti Smith e “Cânticos”, de Cecília Meireles, que eu estava lendo no momento em que finalizava o manuscrito.


Curiosamente, as maiores influências do livro não vieram da literatura, mas de obras das artes plásticas, em especial de escultores franceses como Camille Claudel, com destaque para a obra L’Âge mûr, escultura que foi central para minha escrita, além de La Valse, L’Abandon, entre outras; L’Éternelle Idole e La Cathédrale de Auguste Rodin; as obras na exposição Matières de Bruno Catalano; a escultura Roland Furieux, de Jean Bernard Du Seigneur, além outras obras (esculturas, principalmente) do romantismo francês e italiano, que resgatavam narrativas mitológicas greco-romanas. 


O livro também teve muitas influências de estudos sobre gênero e feminismo nas fontes sagradas do judaísmo e da liturgia judaica, em especial na figura de Lilith e a discussão de seu apagamento histórico dos escritos bíblicos.


4 - Você escreve desde quando? Como começou a escrever?


Comecei a escrever na infância, por volta dos sete anos já rabiscava as primeiras histórias. Escrevo poesia desde os doze anos, logo quando comecei a estudar poesia com mais profundidade na escola. Acredito ser importante apontar aqui que comecei a escrever graças ao fato de ter me tornado uma leitora voraz desde cedo, muito por influência dos meus pais, ambos leitores vorazes, e pelo incentivo à leitura e à literatura que tive durante minha educação escolar primária e no meu entorno familiar. Ler regularmente, me apaixonar pelo ato da leitura, pelos livros e pela literatura foi essencial para que começasse a escrever, desejasse escrever, ou mesmo sonhasse em me tornar escritora algum dia.


5 - Como você definiria seu estilo?


Há uma transparência quando escrevo, é um ato criativo íntimo e sincero, independente daquilo que esteja escrevendo. Tento evitar filtros e enfeites com as palavras, não estou muito preocupada com a estética, mas sim com a organicidade do texto. Escrevo como penso e como falo, um pouco no sentido do que Virginia Woolf chamava de fluxo de consciência, mas, ao mesmo tempo uma escrita muito ligada ao ato da fala, à voz, ou mesmo a essa “voz da consciência”. Acredito que minha escrita tem um forte caráter performático, rítmico, quase tecendo uma musicalidade. Pode ser prolixa e propositalmente repetitiva, mas busco escrever assumindo as falhas e as imperfeições do texto, assim como existem as contradições do discurso, as irregularidades da fala. Escrevo sem eufemismos, sem medir as palavras. Busco intensidade, profundidade, muitas vezes posso abusar de hipérboles e sinônimos por gostar muito deles, mas sempre mantenho uma preocupação em harmonizar sons, significados e a cadência da fala, da língua. Por conta disso, as rimas aparecem, muitas vezes sem que eu perceba, perfeitas ou imperfeitas. Mas também gosto quando não aparecem.


6-Como você descreve o seu processo criativo?


Depende muito do gênero literário que estou escrevendo, se parto de um tema pré-definido ou não, se estou experimentando, exercitando, pesquisando. Meu processo de escrita não costuma ter regras definidas, planejamento, rituais específicos ou rotinas, cada qual acontece à sua maneira. Percebi, no entanto, que nos últimos anos escrevo poesia por meio de um processo que acontece quase que naturalmente, um modus operandi específico marcado por três etapas distintas. A inicial, de absorção, criação, produção, que costuma ser bem caótica, porém divertidíssima e muito imaginativa, inesperada; a intermediária, de desenvolvimento, investigação, compilação de textos antigos que dialogam, que de alguma forma estejam relacionados. Reescrita e mais produção, que costuma se dar de forma mais estável, até mesmo terapêutica; e por fim, a última etapa, de consolidação, conclusão, finalização, que acontece de maneira extremamente metódica e rigorosa. E pode ser que obsessiva.


7 - Como funciona?


A escrita sempre me acontece de maneira inusitada, sem planejar. Escrevo em horários totalmente irregulares e nos contextos menos apropriados possíveis, sou inconstante, desorganizada, inconveniente, nada exigente comigo mesma. Escrevo porque preciso escrever. A inspiração parece vir desse lugar inesperado, desse fluxo vital sobre o qual não temos controle. Minha escrita se desenvolve nesse sentido de forma muito intuitiva, orgânica. Me deparo escrevendo no metrô a caminho dos estudos ou do trabalho, no ônibus voltando embriagada para casa depois de alguma festa, na cozinha enquanto faço meu jantar, em alguma fila de espera, antes de dormir, após acordar. Escrever parece uma ação do dia a dia tão natural quanto respirar, comer ou dormir.


A segunda etapa, que eu chamaria de mais investigativa, acontece após deixar esses textos ruminando um tempo nos meus caderninhos, em folhas soltas ou nas notas do celular, esquecer que existem. É o momento em que me deparo com o caos total dos textos que escrevi e quando vejo neles, de certa forma, um alinhamento, uma história, um fio  narrativo se erguendo tímida e escancaradamente. Costuma ser um momento mais neutro, como o ato de costurar uma colcha de retalhos. Começo a reunir as pontas soltas, retrabalhar aquele material meio cru, adicionando coisas novas e resgatando textos que ressurgiram do passado. Após compilar os textos antigos e os inéditos, vou lapidando a matéria bruta que surgiu nesses espasmos aleatórios de inspiração e criação como uma escultora: extraio do papel tudo aquilo que não faz parte da obra; a obra já está no papel, assim como o Davi de Michelangelo já estava na pedra. 


Nesta etapa do trabalho criativo, exploro muito o universo do sensível-imaginativo, buscando unir o subjetivo ao objetivo, forma e conteúdo. É o momento de enraizamento da escrita, conectar as ideias, o onírico, com o mundo real, concreto. Quando os escritos compilados, reorganizados, reeditados, reescritos e reformulados inúmeras vezes parecem estar representando algo mais claro, me transmitindo mais objetividade e confiança, navegando uma rota mais precisa, isso significa que cheguei a um ponto nevrálgico do meu processo de escrita. Ao ver todo aquele material caminhando, progredindo, direcionado a um sentido, uma direção específica com uma ideia nítida, posso prosseguir. 


A dinâmica de escrita muda novamente por completo. A segunda etapa cumpre sua função, dando início à terceira e última parte, que ocorre de forma muito rigorosa e organizada, até mesmo metódica, visando concisão, consistência, coerência e a consolidação do processo criativo. Reparo minuciosamente em cada vírgula, em cada detalhe. Sou extremamente perfeccionista e exigente, escrevo e reescrevo, mudo a ordem dos textos, apago muita coisa (ou deixo de lado para trabalhar nessas coisas futuramente) até que, eventualmente, por mais que eu teime, não haja para onde ir. Me torno ligeiramente obsessiva, posso ficar dias e horas sem parar de pensar ou falar sobre o que estou escrevendo, pulo refeições, passo horas em frente ao computador passando o papel para o digital, teclando. Muitas vezes surgem coisas novas de última hora, que logo reorganizo em seu lugar exato. Muitas vezes tenho dificuldade de aceitar quando o processo chega ao seu fim. Em um dado momento, me dou por vencida por mim mesma. Derroto minha insatisfação interna e me contento com o fim quando a reedição das minhas próprias palavras se torna supérflua, sem sair do mesmo lugar.


8 - Que tipo de referências você usa utiliza nesta etapa?


Referências das artes e do estudo de humanidades em geral me inspiram e são centrais no meu processo de escrita, assim como referências do judaísmo, parte essencial da minha identidade, sua prática, tradição e estudo. Escrevo muito quando vejo coisas novas, ao conhecer novos artistas, novas referências, novos repertórios, sejam eles literários ou não. Os fantasmas do passado também me inspiram muito, apesar de ultimamente eu procurar evitá-los. As memórias afetivas, lembranças distantes, a nostalgia, tudo aquilo que surge inesperadamente em sonhos (ou pesadelos), ideias que nascem ao acordar meio sonâmbula durante a madrugada, todas essas vão todas direto para o papel. Quer dizer, se alcanço papel e caneta (ou meu celular) a tempo de não esquecer.


O estado de criação também muda muito se estou perto da natureza. Prefiro o meu estado de criação quando estou longe do meio urbano, quando viajo para perto do mar ou de alguma fonte de água natural. Sempre escrevo como se estivesse ouvindo alguém contar uma história em voz alta, como se estivesse declamando palavras que ainda serão escritas. Digo que minha escrita é intuitiva porque escrevo como se  já conhecesse de cor um texto que ainda será escrito, aquilo que poderá ser escrito.


9 - Você tem algum ritual de preparação? Tem alguma meta diária?


Não. Não tenho metas, apenas a necessidade de botar algo no papel. É um processo inexato, que por vezes se dá nesses três tempos, nessas três etapas que ocorrem sem planejamento prévio. Mas esse processo nem sempre foi assim, e apesar de ter sido nos últimos anos, estou experimentando novas ferramentas de criação na escrita.


Desde o início deste ano, passei a manter um diário. Escrevo quase todos os dias, pelo menos algumas vezes na semana. Venho desenvolvendo o hábito — e exercício que sempre tive dificuldade de manter — de escrever diariamente, sem exceção, mesmo que seja um punhado de palavras. Acredito que isso está começando a ampliar horizontes e a abrir portas que antes eu não era capaz de acessar. A meditação também tem sido uma prática a qual estou tentando adequar em meu dia a dia, e que vem me fornecendo fontes infinitas de inspiração e a concentração necessária para o trabalho com as palavras. Comecei há dois anos a manter um diário de sonhos, o que desde então também tem sido uma fonte de inspiração muito rica.


Tenho a impressão de que estamos constantemente mudando e, assim como a vida, a escrita também muda.


10 - Quais são os seus projetos atuais? O que vem por aí?


Venho me dedicando muito à dramaturgia e à performance. Gosto de misturar múltiplas linguagens artísticas, então tenho buscado me aprofundar cada vez mais na pesquisa da prosa poética enquanto uma literatura performática, desenvolvendo trabalhos que unem literatura e performance, teatro e poesia. Também comecei a explorar a palavra-texto com a imagem e o som, ou seja, o audiovisual, testar vídeo-poemas. Não larguei o osso da prosa, estou começando a arriscar publicar contos, minicontos e quem sabe futuramente um romance surja por aí.