por Ronaldo Cagiano__
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A VIDA NÃO TEM MÉTRICA
Matéria inabitada,
o futuro não sabe nada de nós,
assim como reclamamos do passado
aquilo que a memória sabotou
em nossos corações esquivos
Pisamos o presente
como se fosse nossa dízima periódica,
esticamos as cordas para medir os desenganos;
e o resultado é nunca absorver o mínimo
de nossa máxima fugacidade.
Na autópsia do instante,
fósseis de um tempo natimorto
povoam as vísceras do pranto.
ÁLBUM DA INFÂNCIA
As palavras são para as ocasiões,
o luto é quotidiano.
Manuel de Freitas
Em que cantos da casa
hiberna a furtiva sensação
do que fomos?
Só os mistérios e fantasmas
não dormem:
continuam a habitar
o álbum de família,
sem limites para o desacontecer.
As recordações
são palimpsestos que desvelo
na pátina dos móveis
no mofo que grafita estranhos seres
nas paredes
nos picumãs que resistem
sobre o fogão à lenha
ou no chiqueiro desabitado
que agora disputa com o vazio
os miasmas de tantos segredos.
Na velha Singer adormecida,
a hesitante linha atravessada na agulha
aguarda a tessitura do amanhã,
mas as mortes chegaram primeiro
farejando-nos com seu rumor de asas.
Todos partiram,
o cansaço visita os quartos
e digere a vida
e desse silêncio resta
inútil espólio:
os varais estão inertes,
a horta desidratada,
o pomar atacado pelo exército de bactérias,
não encontro palavras para descrever a tirania dessa hora
e nenhum alfaiate consegue amoldar a roupa para o meu luto feroz.
Entre o que vejo e sinto,
as teias de aranha,
testemunhas das estações,
denunciam o que já não me pertence.
ASSIMETRIA
A rosa insuspeita
(não importa se nascida da fatalidade
ou do arbítrio)
em sua fuga do caos
agride o desaforo do asfalto
e proclama seu lugar no mundo
em meio à coleção de esquifes
Os sombrios tempos
têm vergonha de sua exaurida verdade
diante da primavera
e suas flores subversivas
que derrotam a escuridão
afrontando a regência do medo
Entre cismas e cinzas
um pássaro irrompe ao longe
cativado pela inóspita floração
e esteriliza, com seu aparato veloz,
o desequilíbrio desse tempo
& implode
as redomas do caos
ANTAGONISTA
A palavra é a fogueira
que queima todos os horrores
nessa paisagem sem piedade
nem remorsos.
Atravessando desertos
& blasfêmias,
o poema não se submete
ao engano das miragens:
rio que atravessa
o mais fundo exílio,
espera o estuário,
para libertar-se
das margens opressoras,
interroga o insondável
que o espera,
seta antagonista
com sua atroz verdade,
arremesso contra a ferrugem
do tempo.
ESBULHO
Vejo os psicanalistas
como espiões da intimidade
não pagam pedágio
nas alfândegas do meu
medo
É breve o seu reinado
mas perduram
as cicatrizes
de tão autorizada
intromissão
Continuam vivos
os meus fantasmas,
não há ataúde
para os meus espantos
CARNIFICINA
Cada homem
é essa carne sem nome
entre uma bala perdida
e a destroçada esperança
na diária oficina
da violência urbana,
açougue que animaliza
o rebanho sem norte,
esperando o corte
na vitrine fashion da morte
na cidade derrotada por metástases
e metáforas de sangue
num escrutínio
sem sorte
CHIAROSCURO
toda a minha noite é um auto de fé.
Jorge Vicente
Os dias chegavam-me,
mas nem sempre claros.
Só a noite,
pontual
e inequívoca,
trazia-me de longe
os seus fantasmas
Em meio aos flashes
de uma lua indecisa
na coreografia
das nuvens
uma oblíqua incerteza
dinamitava
meu espírito insular