Poemas do livro Antes que a gente morra, de Ana Larousse

 por Ana Larousse__






um cisco de sonho que me força a arregalar os olhos

na preguiça, confio que se desprenda sozinho

sem que eu precise desacomodar as mãos do guidão da bicicleta

pra tirá-lo dali


*


eu

colecionei quadros que nunca preguei

nas paredes que eu também nunca pintei

conquistei amigos que nunca ouvi

chorei por amores que nunca vivi

escrevi poemas que nunca mostrei

comecei dois livros que nunca acabei

li sobre países pra onde nunca parti

guardei dicionários que nunca abri

ensaiei telefonar mas eu nunca liguei

pras garotas que eu tentei mas também nunca amei

compliquei problemas que nunca venci

quis gostar de filmes que nunca entendi

odiei fotografias que nunca rasguei

disse não me lembrar quando nunca esqueci

das dores que chorei mas que nunca assumi

vivi tanta coisa que nunca contei

contei tanta coisa que nunca vivi

ando ansiosa pra ser o que penso ser

quando tento ser eu


*


abri muitas caixas hoje

e alguma coisa entre rinite e vazio me fez cuspir pelos olhos


minha sensação sobre mim seja talvez uma mentira

e talvez eu nem engane vocês


*


um piano abandonado na avenida

me apresso a tocar

a solidão dele parece ter ficado mais bonita

a minha parece ter doído mais


*




A compositora e poeta Ana Larousse (@larousse.ana) nasceu em Manaus (AM), mas cresceu em Curitiba (PR). Aos 18 anos, mudou-se para Paris e ali viveu durante seis anos, enquanto estudava arte contemporânea na Université Paris 8. Ao voltar para o Brasil, gravou seu primeiro disco autoral, produzido pelo Rodrigo Lemos (Lemoskine, ÀVUÀ) com canções que escreveu no estrangeiro, o que a motivou a rodar o Brasil fazendo shows. Desde que voltou para o país, mora em São Paulo e atua como facilitadora de oficinas de escrita, tradutora e compositora. “Antes que a gente morra”  (Urutau, 2023) é seu livro de estreia.