por Tito Leite__
TRANSPOSIÇÃO
Tirei do girassol
as suas cores matinais
e sentei a existência
num vagão embriagado.
Na angústia-férrea
de primaveras e gestos
impensáveis, extrapolei
e perdi a estação.
Nas entrelinhas
do silêncio a palavra
pesa e o sangue não pondera.
Entre bétulas e trilhos
a loucura é bilíngue.
TEMPESTIVO
De repente a viagem
mudou.
A estrada agora é pasto
para muitos bois
e no outro lado da aventura
peixes chegam
atrasados no deserto.
Na montanha
um eremita fica viúvo
da solidão –
atira no pássaro
porque já não é um homem de paz.
Ele agora procura um bar
como aqueles
de um filme de faroeste.
Em Gotham City,
uma garota lê
a imitação de Cristo
e coloca uma rosa dentro
do sapato.
TEOPOÉTICA
Acalmar a loucura
que transborda
da ânfora do juízo
e mostra
que não sou um homem
de águas calmas.
Sou um fugitivo
das coisas fáceis.
Sem manuais
e opiáceos
para administrar minhas fissuras,
dormi numa plantação de tabaco.
E namorei o perigo,
nas tempestades
dos olhos de um sábado.
É tão sagrada a sonoridade
de uma cigarra
que de joelhos
faço uma teologia do nada.
Procuro Deus dentro de mim,
o encontro no escândalo
de uma lua em pássaro.
ACASO
Uma pessoa fora do lugar.
A substância
da sua casa não cabe
na carga horária de uma tarde.
No refino estrondoso
do seu imo, busca no espelho
a vida dos seus devaneios
[o sonho entende
a clareira de um rosto
no espelho].
Há um operário
de uma fábrica
de cobalto que escuta uma canção
de David Bowie e
entre os ruídos do metrô,
lembra-se que na planície
alguém
espera um disco voador.
ESTREANTE
para W. V. E
A jaqueta
de couro
que você comprou
de um viciado,
faz-me pensar
na câmera
kirlian
com a cor da tua aura.
O domingo
em que saímos,
lembro
como se fosse
uma lua minguante.
O teu diário
áureo,
tudo tão delicado
e beijo
cada página.
Não desejo
adivinhar
os teus mistérios.
Quero
te levar ao
ao louvor,
lá onde podemos
perder o ar.
Você vem?
Não pergunte
até onde posso ir.
Céu,
inferno,
Recife
ou Estocolmo.
Eu atravessaria
as noites
só para loucos
de Olinda contigo.
Faria uma assonância
com o teu nome
e o traduziria
na serenidade
do peiote.
*Poemas do livro A palavra em seu deserto.
Tito Leite nasceu em Aurora/CE (1980). É poeta e Monge beneditino. É autor dos livros de poemas Digitais do Caos (Selo edith, 2016) e Aurora de Cedro (7letras, 2019). Dilúvio das Almas (Todavia, 2022) é o seu primeiro romance.