por P. R. Schneider__
– Deve ser… – saiu-me a resposta imprecisa.
Passos no asfalto ainda quente.
– Você acha que a cidade está comprometida em nos afastar? - perguntei tímido, mas com a convicção que não era de uma pergunta.
– Acho que a gente se afasta por si só, não é a cidade, não. É a gente. Sou eu. É tu. Por quê tu acha isso? - segurou o cigarro entre os lábios, tragando sem pressa.
– Faz diferença?
– Toda. Muda tudo. Se tu acha que a cidade separa a gente vai ver é só um sentimento seu sendo verbalizado, né?!
– Não é não. Para de me tratar como um paciente seu, isso aqui num é terapia.
– Parei. Vai, senta aqui – aponta uma imensa pedra reta, era a que dava para sentar ali no meio daquele imenso quebra-mar – a gente tem que conversar menos, sabe? Conversa demais e beija de menos.
– É que eu gosto – sorri vencido – mas de boa.
Era nosso segundo encontro na mesma semana, uma obsessão de ficar querendo se vê fazia dessas horas de intervalo entre um encontro e outro uma era inteira.
Tá serenando muito esses dias, fico meio melancólico mas também feliz, chuva faz comigo a mesma coisa que com as plantas, uma reticente euforia no sereno gelado. Ainda acho estranho estar serenando no mês de setembro, não faz muito sentido parando pra pensar de um ponto de vista meteorológico, nem tudo precisa ser igual todo ano mas a humanidade está habituada a padronização das estações e eu me habituei ao verão seguido de verão intenso aqui em Fortal. Tem uma chuvinha lá e cá mas nada que espante o mormaço ou faça o sol esquecer de dar as caras.
Setembro parece ser um mês repentino, meio como junho ou fevereiro, mas setembro tem sua passagem marcada pela não metódica forma de passar, tudo pode acontecer em setembro. É um mês que ninguém espera nada de relevante. Eu não espero pelo menos mas acontece. E nessa sexta feira de setembro, na segunda sexta feira exatamente, resolvi dar um chance ao acaso e sair com o tal cara que me fitava nas reuniões, sempre com olhar objetivo mas que fingia estar desatento. De volta eu olhava por baixo do cabelo e escondido atrás dos óculos, não sem pretensão, pelo contrário, queria extrair o que aqueles olhos agoniados queriam. Fiz assim: deixei que os tals olhos tivessem mais ousadia, e se puseram em mim até que então deram pra acompanhar, perseguindo meus olhares-passos em toda e qualquer oportunidade. Até naqueles momentos que dispensam contato visual.
– Te encontro ali, na 13 de maio. – disse ele.
– No meio da rua ou na calçada? – brinquei querendo desviar a tensão desse próximo passo no embate dos olhares furtivos, – A gente precisa comemorar, a rainha morreu.
– Pena pra ela.
Tinha um banco gelado embaixo de uma mangueira enorme dentro de um estacionamento deserto, com um vigia cansado cochilando na sua guarita semi iluminada. De fundo um radinho de pilha grunindo. Eu poderia dizer que era madrugada mas não era, só era uma sexta feira de setembro logo após a morte da rainha. Nada de novo numa cidade que ferve de manhã respira neon à noite.
Minha cidade é esquisita, mesmo ensolarada consegue ser tácita, um pouco triste.Vou tentar explicar. Como passamos o dia todo sob um sol intenso e recebendo calor, quando a tarde vai findando e, caindo sobre nós o crepúsculo anuncia a noite, tudo vai minguando, as pessoas cansadas voltando dos trabalhos impressos nos seus ônibus ou nos seus carros. Um semáforo aqui e ali dando defeito com seu amarelo piscante nos mandando desistir da jornada para casa. Uma tiazinha tapioqueira com seu carrinho e uma pochete de trocados. Dois gatinhos de rua mastigando sem alegria um arroz gelado na tampa de um pote de sorvete. Vai tudo esfriando, o chão ainda tá quente mas a gente é que vai amiudando, ficando menor do que já se é em uma cidade grande.
E na magnitude dessa cidade, no céu de uma falsa madrugada a gente se beijou; se fez um lapso que rasgou as horas e ficamos ali, entre primeiros beijos e primeiros abraços com nossos tímidos e inéditos toques. Ele me disse algo sobre o fato de que namorava outra pessoa há alguns anos, ignorei.
Curioso perceber numa outra pessoa detalhes que a farão fixá-la na memória; um sinal no pescoço, uma bochecha mais rosa que a outra, um cheiro específico de creme de barbear e perfume amadeirado, uma pequena pedra azul suspensa no cordão de macramê. Uma noite nova para um setembro quase sempre já nascia velho.
– Faz tempo que você me olha e não diz nada, Paulo. – seus olhos sempre afoitos me gritavam para parar com aquilo.
– Desculpa. Gosto de te ver.
– Que bom… mas isso é estranho. Eu também gosto de te ver, só que eu olho normal pra ti, menino.
– É a única maneira que tenho de ter um pouco mais comigo, Rafael. Para de ser chato. Sua cara é engraçada, você fica o tempo todo fingindo ser sério mas na verdade não aguenta dois segundos de uma boa encarada.
– Para de coisa – riu tímido – é que tu olha diferente.
– Como? Meio psicopata?
– Não. Meio que sabe tudo da pessoa só em olhar. De um jeito que não sei dizer. Um dia eu digo como eu acho.
– É um olhar apaixonado.
– Não sei se é um olhar apaixonado, não…
– Rafael.
– Paulo.
– Isso não foi uma pergunta.
– Tu tá apaixonado? – ele me apertou com as mãos geladas.
– Não é óbvio?
– Tu tá é brincando comigo. Já já dá um sumiço e nunca mais te vejo. Não seria uma surpresa.
– Não tem razão pra eu sumir, as pessoas que fazem isso comigo na verdade. Não gosto de sumir, e inclusive, te peço que não suma. Acho que não aguento mais uma decepção.
– Eu não vou sumir, Paulo.
O mar e a noite sempre me causaram medo mas também um fascínio que eu descobri mais tarde se tratar de uma constante busca pela morte. Uma amiga me disse que pessoas que gostam do mar à noite, ainda que com hesitação, desejam morrer, se jogar na imensidão desconhecida do oceano em breu. Nunca vou questioná-la sobre isso. Tanto nossos desejos quanto o mar a noite tem suas razões para serem instigantemente profundos.
– Paulo. eu vou viajar no final desse mês, e vou ficar uns 30 dias fora e sem comunicação constante. Eu pretendo voltar, tudo bem?! Acho que tu vai me esquecer nesse um mês. Nossas percepções de tempo são muito diferentes mas eu volto.
– Não tô afim de te esquecer nesse mês. Tudo bem, te espero.
– Mas você vai.
Não esqueci porque não cabia aquele momento esquecer ou desejar isso, só cabia ali a espera, a angustiada espera pela continuação de um amor agora em suspense. O mês passou, e não tive nenhum retorno do que partira, ele estava de volta na cidade mas tão somente por uma sorte eu o encontraria na rua, por que por vontade ele não retornara. Ficava observando sorrateiramente qualquer criatura que tivesse os olhos afoitos dele, ou talvez o mesmo tipo de cabelo, o jeito de andar; minha busca se mostrou inútil quando passou o natal e o ano novo. Ficou um hiato entre a lembrança e o que de fato acontecia comigo. Caí no precipício de fingir que esqueci. Eu não contava com o fato de que ele surgiria perguntando "você ainda me quer". E como instiga o mar, fomos a praia, sob uma lua prata imensa.
– Seu cabelo cresceu. Essa sua camisa é bonita. – ele fingia uma naturalidade que se partira.
– Rafael.
– Paulo.
– Eu entendo a necessidade de espaço mas quando…quando você sumir de novo, eu não estarei mais aqui.
– Desculpa.
***
O carnaval na cidade tem cores não muito diferentes das que sempre têm, aqui o ano todo o carnaval dá suas pequenas investidas na gente. Há sempre em qualquer barzinho meia dúzia de gente com glitter cantando. Isso revigora uma cidade que se empalidece à noite, contrastando com o nebuloso domingo de véspera da semana cansativa. Nós dois experimentamos o carnaval, eu que não soube, experimentar o limbo que o carnaval e o amor genérico trazem consigo. Me senti um estanho diante de uma mesa de amigos, que se questionavam onde estavam o namorado dele, que lógico, nunca se tratou de mim. Eu era o enorme elefante na sala. Ou talvez o brinquedo novo que uma criança insiste em mostrar para os colegas ou talvez uma carniça aguçando o paladar dos abutres.
– Rafael. Me sinto mal em ser isso. Em ficar nesse limbo…o que eu sou pra você?
– Bicho, eu não posso te assumir. Eu não tenho condições de te assumir, você iria demandar uma série de coisas que não consigo cumprir agora.
– Eu não tô pedindo isso, só tô expondo. Já estive nessa posição muitas vezes, me sinto usado, me sinto eternamente aqui, entre o nada e o qualquer coisa.
– Juro pra ti que não estou te usando. Tenta não alimentar essa expectativa, eu não posso cumprir.
– Tudo bem. Posso te pedir algo? – respirei – eu não me sentiria bem de você ficar com alguém que conheço. Alguém que sou próximo, alguém que trabalha com a gente ou temos em comum.
– Você está cerceando minha liberdade, não acha?
Eu desisti de discutir o que é o mínimo diante da proporção do que eu poderia sentir, me dei por vencido em acreditar que era egoísmo meu exigir uma coisa que logo descobri ser demais para uma pessoa tão limitada dentro de si mesma. Prometi que meu corpo seria um corpo disposto a encarar o amor na sua maneira mais crua.
– Eu te amo – foi dessa vez que a palavra me escapou, sem meia culpa, sem filtro nenhum, tão natural como dizer bom dia em uma manhã linda.
– É mentira, você não me ama.
Depois de muito ferir a alma, pedi ao tempo uma espera maior, acreditei que enfim se dera o fim da coisa que havia ali entre nós. E depois de mais um sumiço, findou-se o amor após suscetíveis abandonos. Em abril, um mês de bastante chuva e mormaço, ele me deixou pela última vez sem dizer muita coisa. Um "fica bem" lhe amaciou a consciência por talvez dois dias, e então, ele esquecera. Não há mal nenhum em sofrer de amor. Fui ficando pequeno, minúsculo, no meio de uma cidade nômade que pisca em neon.
P. R. Schneider - Eu existo. Isso é o suficiente.