por Nely da Costa Barbosa__
Abri os olhos, centelhas de luz entraram pela fresta da janela, o resto era escuridão. O único ruído que se ouvia, era o do ventilador, capengando no teto, mas firme na tentativa de cumprir sua função. O corpo quente, o sono não vinha.
Abri a janela, um vento fresco invadiu o quarto, fechei os olhos, tentei dormir, mas a corrente de ar sacudia a cortina, num balé frenético e perene. Comecei a caminhar, andei léguas e léguas até chegar na minha infância e sair correndo solta, sentindo o calor do sol abraçar o meu corpo, frágil, de criança, mas livre e decidido, buscando um caminho, antecipando meu encontro com a mulher que me tornaria, forte e constante em meus propósitos.
Entrei no provador, o vestido caiu-me bem, constatei. Mas não combinava com os meus sapatos, os únicos que eu tinha, uma pena. E nem conseguia acreditar que aqueles olhos eram meus, e que olhavam pra mim, sorrindo de espanto. Da boca não saia uma palavra sequer, nenhum apelo e quando me dei conta, já era mulher. Limpava os pares de sapato e, enquanto os organizava na prateleira, observei, eram tantos!. Lembrei-me imediatamente da conversa que tive tempos atrás com um colega de trabalho, dizia ele: “Meu pai, que nasceu em uma família de parcos recursos, na sua infância, tinha pouquíssima comida, ou a depender do dia, nenhuma comida no prato. Hoje, mesmo morando apenas com a minha mãe e sendo eu, seu único filho, sempre que prepara algo para comermos nos nossos encontros aos domingos, ou em qualquer outra ocasião especial, cozinha com fartura, não sabe fazer pouca comida, mesmo que depois, sempre distribua com a vizinhança o que excede”. Concluiu, enquanto apontava para a parte que lhe coube do último encontro com seus pais. Abriu a marmita e o cheiro da comida incensou toda a sala. Respirei fundo, e novamente me vi criança. Peguei um prato no escorredor de louças, fui até a mesa e falei para minha mãe, seja generosa, esse é um dos meus pratos favoritos. Ela ia me servindo e a cada colherada indagava, já é o suficiente? Eu sempre respondia que não e levava uma bronca daquelas porque não comia tudo. Tentei explicar, que só queria um pouco mais do ovo cozido, mas não sabia como dizer, talvez, naqueles tempos, isso não fosse importante para mim. A verdade, é que ainda não conhecia a comovente história do pai do meu colega que passou fome na infância, como ele também não conhecia a minha comovente história de ter apenas um par de sapatos.
Voltei para o quarto, abri os olhos novamente, levantei-me da cama e fui até a sala, fiquei alguns instantes olhando fixamente para a luz que se alastrava na varanda. Fui caminhando até lá, recostei-me no parapeito e fiquei ali, não sei por quanto tempo, contemplando o céu. Nenhuma nuvem, nenhuma estrela, mas uma lua exuberante, clareava aquela noite, morna e insone.